Após vencer o câncer, fotógrafa percorre a Patagônia de bicicleta

Sintia Weber relatou a viagem de 119 dias que fez depois de sua recuperação

Levando na bagagem a bicicleta, a fotógrafa Sintia Weber, de 51 anos, moradora de Presidente Lucena (RS), embarcou num avião para Puntas Arena, no Chile, em novembro de 2023. Pedalando, ela começou o seu percurso pela região que contempla partes da Patagônia chilena e argentina. A viagem foi inspirada em livros que Sintia leu durante as sessões de quimioterapia para enfrentar um câncer no intestino descoberto em 2021.

“Eu sentia bastante dor na barriga, mas não tive muita pressa de ir atrás de um médico. Pois, como era época de pandemia, eu não ia ao hospital por causa de uma dor na barriga”, conta.

Mas na noite de 21 de maio daquele ano, ela conseguiu uma consulta com um cirurgião gastrointestinal, e foi urgentemente encaminhada para fazer uma ressonância. “Lembro que aquela hora já estavam desligando os aparelhos, mas o doutor insistiu e fez o exame”, lembra ela. Em sua casa, na manhã de seguinte, o marido de Sintia, William Welp, recebeu uma ligação do hospital, informando que ela tinha um tumor e que precisava ser levada para o bloco cirúrgico.

Sintia e seu marido, antes da quimio. Foto: Sintia Weber/Arquivo Pessoal

A fotógrafa relata que chegou a avisar as suas irmãs que iria passar pelo procedimento. Duas horas depois Sintia já estava na mesa de cirurgia. “Quando acordei, estava com uma bolsinha de colostomia “, conta. 

Alguns dias depois ela recebeu o diagnóstico de câncer no intestino em estágio 4, o mais avançado. Ela precisou ficar com a bolsa por um ano e meio, mas reagiu muito bem ao tratamento. Dois meses após a operação, começaram as sessões de quimioterapia e durante esses momentos, Sintia lia livros que confirmavam um desejo antigo: fazer uma longa viagem de bicicleta. “Nunca fiz nada assim, a vida inteira eu só trabalhei e nunca fiz nada para mim”, desabafa. 

Durante o tratamento ela leu No guidão da liberdade, de Antonio Olinto Ferreira e Transpatagônia: Pumas não comem ciclistas, de Guilherme Cavalari que ganhou da irmã Gracieli Weber, a quem chama de Grazi. Sintia relembra ainda que leu Sola en bici, de Cristina  Spínola.  “Para mim, essas leituras eram uma forma de amenizar as sessões de quimio, e de literalmente sair daquele lugar, e viajar”, recorda.

Sintia segurando o livro durante a quimio. Foto: Sintia Weber/Arquivo Pessoal

Antes mesmo de receber o diagnóstico, Sintia tinha conversas com Grazi sobre o seu desejo. “Lembro que ela me disse numa festa há uns anos que ainda iria  viajar de bicicleta pela América do Sul”, conta a irmã. Porém, a decisão foi tomada durante o tratamento. Gracieli conta que a ideia ajudou Sintia a manter o espírito elevado durante o tratamento.  “Ela é o meu exemplo desde pequena. Uma mulher forte, inteligentíssima, carismática, engraçada, brava, justa e amorosa”, ressalta.

Sobre o tratamento, a irmã revela que Sintia se mostrou bastante confiante. “Sua força e determinação tomaram proporções ainda maiores. Ela se manteve sempre positiva, mesmo nos momentos mais difíceis. E ainda tentava não demonstrar fragilidade, para poupar as pessoas que ela ama”, relata Grazi, reforçando que, mesmo num momento tão difícil, Sintia não perdeu seu brilho e generosidade.

Livros que fizeram Sintia se inspirar nas viagens de bicicleta. Foto: Sintia Weber/Arquivo Pessoal

Em novembro de 2022, a fotógrafa passou pela última cirurgia de reversão, para a reconstrução do intestino. Em janeiro do ano passado, começou a pedalar e equipar a bicicleta para a viagem.

As amizades, os desafios, o apoio e a natureza da Patagônia

Sintia Weber encerrou seu tratamento em outubro de 2023, só precisando fazer novos exames em seis meses. E do consultório saiu decidida a viajar de bicicleta pela Patagônia. “Eu já conhecia a região, fui de carro, é um lugar seguro. E nessa época o clima é mais agradável”, afirma.

O marido, William Welp, conta que apoiou a decisão da esposa desde o início e que não ficou surpreso. “Ainda que intimamente eu pensasse que fosse uma jornada muito árdua, sabia que a determinação dela era ainda maior”, conta.

A bike foi toda desmontada para ser transportada em uma caixa, explica Sintia. “Quando cheguei na Patagônia, eu tive um choque de realidade. Meu celular não se conectava à internet, e como eu não havia planejado o destino seguinte e não tinha feito nenhuma reserva em hostel, olhei para a caixa e fiquei pensando em como iria montar a bicicleta”, lembra. Por sorte foi socorrida por um rapaz que passava com seu irmão. Ele falava inglês, idioma que Sintia não domina, mas arranhando no espanhol, conseguiram se comunicar.

Em troca da caixa que guardava a bicicleta, os dois ajudaram a fotógrafa a montar sua bike. “Várias vezes durante a viagem, quando eu tinha um problema, aparecia alguém para ajudar”, relata.

Quando pegou a estrada, Sintia teve outro choque, o de temperatura, devido ao frio extremo. Mas ela estava preparada: na mochila, carregava luvas impermeáveis, uma balaclava (touca em que só há abertura para os olhos), um cachecol, entre outros acessórios.

Frio de 5°C em El Calafate. Foto: Sintia Weber/Arquivo Pessoal

Em Puerto Natales, resolveu pegar um ônibus para Puerto Natalese depois até El Calafate, pois não tinha condições de andar de bicicleta, devido ao vento de mais de 100 km/h. Mas já na cidade, Sintia pedalou 70 km pela Ruta 40, famosa estrada da Argentina que vai de ponta a ponta do país.

A fotógrafa passou a ponte do Rio Santa Cruz e começou a descer por uma estrada menor, onde decidiu acampar, pois já estava cansada. “Dei uma explorada no local e encontrei a ruína de uma casa. Montei a barraca ali mesmo, prendendo umas pedras na ponta, devido ao vento que ainda passava pelas paredes”, explica.

Ruínas onde Sintia montou a barraca. Foto: Sintia Weber/Arquivo Pessoa

No dia seguinte, o sol estava alto e Sintia seguiu viagem. Por volta das 15h, avistou a primeira casa e decidiu descansar na sombra das árvores. A família que morava lá ofereceu estadia, que ela aceitou prontamente. 

“Uma coisa que eu coloquei como regra, era sempre dizer “Sim” para as oportunidades que surgiam”, conta.

Para seguir viagem, ganhou carona de um conhecido da família que estava saindo de El Chaltén de caminhonete. “O mais impressionante é que os pais dele são gaúchos, brasileiros, e ele é argentino, mas sabia falar o mesmo dialeto alemão que falamos aqui na região de Presidente Lucena. Percorremos o caminho todo falando a língua”, lembra, sorridente.

Em El Chalten, Sintia percorreu cerca de 40 km e parou para repousar em um galpão de uma fazenda, no meio de vários animais. Nesse lugar, estavam dois casais, assando carne de ema e ovelha. “Eles acabaram me oferecendo, e eu acabei experimentando. Parecia carne de gado”, conta ela. 

No dia seguinte, ela pedalou aproximadamente 80 km, até a cidade argentina  de Tres Lagos. O restante do percurso, de 73 km,  para a cidade de Gobernador Gregores, Sintia percorreu de ônibus, em três horas, pois a estrada é formada por rípio, estrada de terra e cascalhos. O trajeto também conhecido como “73 malditos”.

Chegando em Gobernador Gregores, a fotógrafa ficou em dúvida quanto ao próximo destino, pois todas as cidades ficavam bem distantes, entre 400 e 500 km. Conversando com a cobradora do ônibus, ela decidiu ir para Los Antiguos, onde há um rio que divide a Argentina e Chile. De lá, seguiu para Chile Chico, no Chile, na véspera de natal. Nesse trajeto ela foi conhecer o rio e queria seguir ele até o lago, mas perto do lago não tinha passagem, pois o rio se dividia e seu Rosário que estava passando de cavalo, a levou até a beira do lago, passando por alguns braços do rio. 

Sintia com o senhor Rosário que deu a carona de cavalo. Foto: Sintia Weber/Arquivo Pessoal

Em Chile Chico, ela deixou a bicicleta na pousada, que iria fechar no feriado natalino, e seguiu viagem de van, para Puerto Rio Tranquilo. Nesse destino, Sintia fez um passeio nas Capillas de Marmol, cavernas de catedral de mármore, que ficam dentro do lado General Carreta. Depois, passou por Villa Cerro Castillo, onde subiu uma montanha, com partes encobertas pela neve, numa caminhada de 22 km. 

Em Puerto Ingeniero Ibáñez, ela pegou uma balsa e voltou para Chile Chico, chegando na véspera do ano novo. Sintia pegou a bicicleta na pousada e foi para a Reserva Nacional Jeinimeni, onde ficou por cinco dias. A fotógrafa conta que o imenso lugar faz parte do Parque Patagônia, parque binacional, parte no Chile e outra na Argentina.

“Vi um puma, na manhã do primeiro dia do ano. Foi o lugar mais lindo da viagem, onde fiz trilhas”, conta.
Piedra Clavada, Parque Patagônia. Foto: Sintia Weber/Arquivo Pessoal

Em seguida, Sintia voltou para Los Antiguos, e percorreu 600 km de ônibus até Esquel. Depois Pegou a bicicleta e foi para Trevelin. Chegando lá, ela foi até uma vinícola que tinha um camping, e fez algumas fotos que entregou ao dono do lugar. O senhor gostou das fotos e fez uma proposta: ela poderia ficar quantos dias quisesse, com toda a despesa paga, e em troca faria mais fotos do lugar. “Eles até me disponibilizaram uma câmera, lentes e um notebook. Acabei ficando dez dias”, relata. 

Nesse camping Sintia fez amizade com Grasiele da Silva, 34, administradora que está viajando com o marido, Rafael Silva, há seis meses de motorhome. Grasiele conta que logo perceberam a coragem de Sintia. “Foi a primeira mulher que conhecemos que viajava sozinha de bike. Chamou a atenção também a alegria e a empolgação dela de viver, de contar as histórias, o que ela vivenciou, era algo que dava vontade de ficar o dia todo ouvindo. Ela  nos mostrou que a vida é para ser vivida da melhor forma”, relata a amiga.

Rafael, Grasiele e Sintia na vinícola. Foto: Sintia Weber/Arquivo Pessoal

Quando chegou no Parque Nacional Los Alerces, Sintia avistou um incêndio florestal que estava acontecendo na Argentina. Foi quando decidiu voltar para Esquel e pedalou por dois dias até Epuyen. Nesse trajeto ela dormiu dentro de tubulações enormes e pedalou por 70km contra o vento. Em Rincón del Motoco ela tomou banho no rio Blanco, de águas cristalinas, e depois seguiu para El Bolsón, que fez trekking de 14km até um refúgio de montanhas. Sintia ainda passou alguns dias no Rio Villegas, onde fez rafting.

Rafting no Rio Manso.  Foto: Sintia Weber/Arquivo Pessoal
Montanhas em Villa Cerro Castillo, Foto: Sintia Weber/Arquivo Pessoal

Hora de voltar para casa

Sintia precisava estar de volta a Presidente Lucena em março, para fazer os exames de rotina na região metropolitana de Porto Alegre. Optou então por fazer o retorno de ônibus, e conseguiu uma carona de caminhonete até Bariloche, onde precisava despachar sua bicicleta  para poder seguir a viagem. 

“Comecei a enrolar um plástico ao redor na bike. Nem cheguei a desmontar, o caminhão a levou”, explica a fotógrafa. Sintia comprou a passagem e levou 24 horas até Buenos Aires. Lá, esperou por três dias sua bicicleta e em seguida pegou o Buquebus, uma balsa que leva até Montevidéu, chegando no dia 8 de março de 2024, em meio à concentração da marcha na Plaza Independência.

Sintia seguiu para Piriápolis, no Uruguai, onde a bike começou a apresentar defeitos. Além disso, havia previsão de bastante chuva. Ela passou numa oficina de bicicletas para um conserto, mas no dia seguinte, o pneu, que havia furado, seguiu murcho. Debaixo de chuva, Sintia encheu o pneu várias vezes até chegar em Punta Ballena. 

No percurso, ela pedalou até Punta del Este e no final da tarde, faltava 14km até próximo destino ela resolveu parar para tentar trocar o pneu quando um motorista lhe ofereceu ajuda. O homem a levou, junto com a bicicleta, até um hotel em José Ignacio. Lá, Sintia dividiu o quarto com uma outra mulher, que acabou lhe oferecendo carona. Juntas, partiram no dia 17 de março de 2024, chegando a Porto Alegre no mesma data. “Aquela carona era tudo o que eu precisava”, recorda.

Sintia conta que a viagem, de certa forma, transformou sua maneira de viver. “Eu comecei a me sentir bem sozinha, a gostar do silêncio e ser mais paciente. Na viagem não sentia ansiedade”, conta.

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Nadine Dilkin

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