Karen Santos: “Eu sou militante. Isso é o meu trabalho”  

Luiza Dorneles, CMPA.

Karen Santos foi a vereadora mais votada de Porto Alegre em 2020. E é uma mulher, negra, de esquerda, totalmente representante da oposição ao prefeito eleito, Sebastião Melo (MDB) e boa parte dos demais vereadores. Isso é reflexo das contradições políticas que acontecem por todo o Brasil. A vereadora crítica a postura de “entreguismo” da cidade às construtoras e as privatizações adotada pela atual gestão e elenca os três maiores da Capital hoje: transporte, drenagem e educação.  

Formada em Educação Física pela UFRGS, em 2013, já trabalhou como telemarketing na Fundatec, agente do IBGE, bolsista na universidade e professora. Karen é do PSOL, sigla em que se filiou em 2016, por entender que esse é o partido que tem um programa mais próximo daquilo entendia enquanto socialismo e que dialogava com o que já fazia dentro da coletividade. Ela ressalta também como ponto positivo do partido ser formado por diversas correntes e coletivos internos.  

A conversa com a Beta Redação aconteceu no dia 24 de abril, pela manhã, por videoconferência. Karen é extremamente descontraída. Apesar de aparentar um certo cansaço, intercala humor e ironia com o tom enfático e tem um grande poder de encadeamento dos argumentos.  

Para começar a conversa, tu poderia contar um pouco de ti, de onde tu veio? Qual é o teu bairro de nascimento?   

Eu sou a Karen. Karen Santos. Karen Morais dos Santos, na verdade. Morais por parte de mãe e Santos por parte de pai. Mas acho que ele também tinha Santos, mas não era direto na linhagem. Eu moro na Zona Sul. Cresci na Zona Sul aqui da cidade de Porto Alegre, no bairro Camaquã. Eu até saí, fiquei oito anos casada. Cheguei a morar no Partenon, na Rua José Rodrigues Sobral. Só que, enfim, retornei. Quando eu retorno, eu vou de novo para a Zona Sul e para o meu bairro de origem. Impressionante.  

Falando um pouco de família, como foi teu crescimento? Tua família sempre se interessou por temas sociais também?  

Olha, eu sou parte de uma família negra, né? Então, os temas sociais fazem parte do nosso cotidiano. Faço parte de uma família negra, de servidores públicos. Meu pai era servidor do Banrisul, e minha mãe servidora de escola pública estadual. A gente tinha acesso a alguns temas, alguns debates políticos. Eu me lembro de quando eu tinha 16 anos, o meu primo Arthur Bloise, Gustavo Arthur Santos Bloise – mas ele concorreu com o nome Arthur Bloise – foi candidato a vereador pelo PCdoB, aqui em Porto Alegre. Ainda era, acho, 1900 e alguma coisa. 

Então, a gente tinha um lado, um posicionamento na nossa família, em relação aos direitos trabalhistas, aos direitos sociais, a função e o papel do Estado, a função das instituições públicas. E também o “agravante” de que nós éramos uma família negra. A gente conseguia entender os impactos do racismo. A gente compreendia o racismo enquanto um fenômeno social que implicava as nossas vidas. A gente compreendia a combinação do machismo, do racismo. Então, eu vim de uma família negra organizada, politicamente falando. E historicamente também, porque veio lá dos meus avós isso.  Então, desde cedo aprendi a me posicionar muito por reflexo. Por aprender com eles, ver, vivenciar. A partir daí, de tudo que eu fui sendo instruída, daquilo que eu fui aprendendo a me colocar frente aos problemas e as mazelas.

Óbvio que foram os movimentos – o movimento negro e movimento estudantil – que me permitiram fundamentar a minha crítica, a minha revolta, a minha raiva. Mas boa parte do entendimento que eu tenho de sociedade, das instituições, do racismo, vem dessas conversas dentro da minha própria família. Isso é muito incrível.   

Quais mulheres na política te inspiram?  

Eu tenho uma amigona, que é a minha chapa de gabinete aqui, é a Marina El Hajjar. Ela foi uma pessoa que me chamou para a política, ainda lá em 2010, para participar do movimento estudantil de educação física. Desde então a gente tem uma camaradagem, um companheirismo muito grande. Não é à toa que eu chamei ela para trabalhar comigo. É uma das poucas pessoas que me entende para além dessa questão da Karen militante, que me entende na minha totalidade enquanto ser humano. Então, é uma pessoa que me ajuda muito por ter essa sensibilidade.  

(E tem) a minha Mãe de Santo. Mãe Paty de Oxum, lá do terreiro da Mapa (Vila Mapa), que é uma liderança comunitária quilombola, e que faz um trabalho incrível dentro de uma comunidade que é impactada pela crise, que tem as suas demandas estruturais de décadas e que acredita na política enquanto parte da sua vida, enquanto instrumento de mudança. Não só aquela política eleitoral, assim, de “Ah, fazer campanha para Karen”, sabe? É uma pessoa que chama a responsabilidade, que organiza pessoas, mobiliza pessoas, inspira pessoas. E é muito incrível, também, ter ela junto, compondo as discussões, as análises, e nos ajudando a avançar.   

E como tu acha que é possível aproximar mais mulheres, principalmente mais mulheres negras, da política?  

Olha, eu acho que estando dentro dos territórios. Sendo útil e contribuindo, não só com o debate. Não é só fundamentar isso que as pessoas vão fazer luta. Boa parte das mulheres, das mulheres negras, está em condições de vida e trabalho muito desigual. Acho que é necessário contribuir com as ações que já acontecem dentro das comunidades. O chá das mães, o Dia das Crianças, da festa de Páscoa. Se é de terreiro, tem função o ano inteiro. Nas lutas, nos protestos. Eu acho que ser instrumentos, sabe? Dar uma assessoria, objetivamente falando, para essas mulheres. “O que tu precisa?” “Ah, eu preciso de panfleto, cartaz, preciso de um bujão de gás, preciso de dinheiro para comprar…”. Sabe?  

Eu acho que criar essa rede, de colocar à disposição aquilo que a gente conquistou em “âmbito de esquerda”, para que essas mulheres consigam se ver numa política que é uma política muito mais – no sentido da existência delas – prática. São problemas imediatos que estão batendo na porta. Não tem muito tempo, às vezes, para grupo de estudo, roda de conversa. Óbvio, tenho que ter teoria, tem que ter debate, tem que ter estudo, mas, eu acho que de imediato, é suprir um pouco essas necessidades organizativas. Uma sede para se organizar. Um carro para poder ir e voltar dos lugares, dos protestos, para poder estar presente nas reuniões, sabe. Eu acho que são questões bem objetivas que impedem as mulheres de estarem mais presentes dentro dos espaços políticos.   

Tu sente que teve isso?  

Uhum. Eu vim de uma família de servidores, né? Eu faço parte de uma classe média negra. Então, boa parte dessas dificuldades do meu povo eu não passei. Meu pai passou, que era de Santa Teresa. Minha mãe passou, que era de Erechim. Mas a minha família, os descendentes, minhas irmãs e eu, a gente já teve outra realidade. Estudamos em escola particular, entrei na UFRGS nas ações afirmativas. A gente foi preparada para seguir um legado de luta, mas também sem aquelas dificuldades. Minha mãe sempre diz: “Ah, lutei tanto para sair do morro e tu adora o morro” (risos).   

Eu acho que é um pouco disso, sabe? As expectativas, as perspectivas deles, de que a gente fosse, sei lá, fazer a nossa carreira, tocar nossa vida. E todas as minhas irmãs são muito politizadas. Até a minha irmã mais velha, a Renatinha, foi a que primeiro se organizou, foi para o PSTU. Minha irmã saiu de casa, se assumiu lésbica. Então, bah, minha irmã, assim… A Renatinha foi a que mais revolucionou. Eu, de certa forma, segui o espaço que ela abriu dentro da família.   

E falando em geração, como tu vê a Juventude hoje, no geral? Tu acha que jovens são engajados?  

O que são jovens? 12, 16 anos? Porque eu me considero jovem (risos). Tenho 35 [anos]. A gurizadinha da escola tu diz? [confirmo que entre os 14 e os 18].   

A geração “Y”, “Z”? Eles têm o impacto do liberalismo, das redes sociais. É uma geração que já nasceu e cresceu com internet, 5G. É uma galera que tem um grau de informação que a nossa geração não teve. Eu não sei até que ponto essa quantidade de informação não paralisa. Teria que dar uma olhada, porque eu não queria ser assim, “a minha opinião sem fundamento”. Teria que dar uma olhada, como é que está o nível de organização nos grêmios estudantis, nos centros estudantis, para a gente ter uma dimensão dessa organização política.   

Em 2013, dez anos atrás, a gente teve o maior processo de luta de massas do nosso país, que foi as lutas contra o aumento da passagem, contra a Copa do Mundo. Boa parte dessa juventude, que tem 12, 15 anos, não participou daquele processo, porque tinha seus três, quatro anos. Não sei até que ponto o reflexo daquela luta – que foi uma criminalização muito forte, que foi o governo Temer, depois vem o Bolsonaro e essa polarização política -, eu não sei até que ponto isso também não acaba influenciando a compreensão da política na sua totalidade, não só na polarização que está posta hoje.   

Hoje, está difícil tu conseguir acessar a discussão mesmo, de fundamento, da história, da sociologia, da organização do nosso país, da luta dos trabalhadores. Está tudo muito atrapalhado por essa ideologia neoliberal, as fake news, a deep web. Então, por mais que eles tenham mais informação que a nossa geração – que a minha geração, que sou de 1988 – eu acho que a forma com que eles acessam isso, se não for de uma forma coletiva, discutida, analisada, nos grupos, nos coletivos, acaba servindo mais para paralisar, para criar questões. Como a gente vê aí, isso é um elemento da ansiedade, da depressão, dessa gurizada não conseguir, muitas vezes, se encontrar dentro da sociedade. Talvez seja isso. É um fenômeno que acho que precisa ser analisado, estudado. Tem gente fazendo isso, mas eu, objetivamente, não me apropriei. Então fica ruim eu fazer uma análise. “Ah, o que que eu acho”, sabe? Eu acho ruim.  

Essa geração que viveu 2013, viveu Temer, tu acha que continua se engajando ou meio que já deixou pra lá?   

Eu acho que sim, de certa forma, quem viveu aquilo entendeu algumas questões. Desde a insuficiência da esquerda, o papel das polícias militares, a relação com as grandes mídias, como as grandes mídias acabaram, de certa forma, contribuindo para manipular tudo aquilo. Quem viveu, quem estava nos protestos, quem foi para a rua, com certeza saiu com uma consciência que despertou coisas em relação à forma como a sociedade se organiza e funciona. Quem ficou vendo pela TV acho mais difícil, porque aí teve as mediações dos grupos editoriais etc. Mas acho que quem viveu, com certeza, por mais que não esteja organizado, é uma pessoa crítica, porque se colocou a ir para a rua, a tomar bomba da polícia. E sabe ocupar aquele espaço, que é um espaço democrático, amplo. Se colocou. Eu acho que isso é um despertar de consciência muito valioso.   

Como está teu relacionamento com o movimento estudantil e o movimento negro hoje?   

Eu faço parte do Coletivo Alicerce, então a gente tem uma atuação junto ao movimento estudantil, a gente tem uma atuação junto ao movimento negro, de mulheres, servidores. Acho que é essa organização política que me permite, inclusive, estar vereadora, porque é o que me alimenta, tem uma dinâmica própria. Eu sou parte do coletivo, então, o mandato é um trabalho, é uma ação do coletivo. A gente tem todo um trabalho que tem que ser feito, mas dentro da coletividade a gente consegue ter essa liberdade. A gurizada produz, cria oficina, roda de conversa, ações políticas na cidade. Isso que eu acho que é o massa de tu ter essa vinculação com algo que é muito maior do que o teu trabalho.  

Mesmo sendo vereadora tu está conseguindo se manter ativa no Alicerce?  

Isso. Eu sou uma militante, né? Isso aí que é o meu trabalho.  

Quais projetos tu já conseguiu aprovar até hoje, que tu consegue lembrar?  

A gente aprova poucos projetos, porque tudo que a gente quer implementar é inconstitucional (risos). Deixa eu pensar… A gente teve o programa todo, o pacote todo da Marielle. A gente teve a revogação do “Dia do Patriota”, que eu acho que foi uma baita de uma sacada do nosso mandato. A gente conseguiu aprovar a instalação de uma estátua do Zumbi dos Palmares, ali no Largo do Zumbi. Mas a gente não teve nenhum grande projeto que a gente tenha conseguido aprovar…  É muito difícil, cara. Não tem voto. Imagina se vão dar muita moral pra gente? (risos).  

Karen durante atuação na Câmara de Vereadores de Porto Alegre (Foto: Câmara de Vereadores de Porto Alegre)

Como tu vê o funcionamento da Câmara hoje, em Porto Alegre? E como tem sido o enfrentamento à extrema direita?  

A Câmara está cada vez mais restrita. A gente teve desde alguns protocolos, que foram adotados pela segurança interna, para evitar a presença de grandes manifestações, até o painel de vidro que eles colocaram, separando o público do plenário. Então, foram algumas medidas de restrição. Agora a gente está retornando ao trabalho mais presencial, mas ainda vai manter o trabalho remoto. Acho que isso também desmobilizou a população de Porto Alegre a vir aqui, pressionar, e fazer a sua cidadania valer. Muitas vezes, (a população) chegava aqui e os vereadores não estavam, porque estavam em trabalho remoto.  Acredito que a Câmara passou por esse processo, e foi potencializado pela pandemia. Agora, para participar remotamente, é para votar, não tem direito a intervenção. Isso acaba obrigando mais o parlamentar a estar presente aqui nos dias de sessão.   

E a polarização, eu acho que é uma característica do período, que é oriunda da crise. Enquanto tiver esse cenário no Brasil, que impacta desde a inflação até a nossa produção de alimentos, como isso está distribuído, o tipo de emprego que o Brasil vem produzindo, acho que são vários elementos que fazem as pessoas estarem num grau de frustração. As pessoas querem consumir produtos de última geração, produtos que o Brasil não produz, aí o preço do dólar fica alto etc. E a classe média tem capacidade de intervir na disputa da opinião pública. A gente está dentro desse lugar ainda, de uma economia que não se resolve para todos, de uma forma mais equitativa.  

Enquanto a gente estiver nessa situação, com esses setores assim tão divergentes e insatisfeitos, vai ser difícil manter a governabilidade. Tu pode até eleger um presidente, como nós conseguimos derrotar o Bolsonaro e eleger o presidente Lula, mas ainda há um clima de instabilidade. Teve protesto esse final de semana, no Rio de Janeiro. Mostra que a extrema direita ainda está tencionando e ocupando as ruas, que é um espaço que a gente sempre ocupou. Ao mesmo tempo, a gente vê lá na Argentina, com o Milei, os protestos de massas que a gente teve, no dia de ontem (23/04), contra os cortes na educação.

Então, não é uma questão só do Brasil a polarização e a crise enquanto elemento, é o capitalismo que está convulsionando. E as pessoas querendo ter acesso. A burguesia, para manter as suas taxas de lucro, retira ainda mais nossos direitos. Eu acho que essa é a grande disputa que fundamenta toda essa polarização. Enquanto a gente estiver nessa etapa, com esse capitalismo apodrecido, que não consegue buscar uma solução para recompor a sua produtividade, a gente vai ter polarização. E é a polarização num nível muito baixo, que é no nível ideológico. Aí vem umas discussões que não têm fundamento. Tu não consegue discutir o que fundamenta a crise, que é um debate econômico, de formação do nosso estado, de formação da nossa economia. É uma discussão ideológica, muitas vezes envolvendo a questão de gênero, a questão de raça, de uma forma, também, muito estigmatizada. Então, o parlamento tem pouco a contribuir hoje, nesse sentido de lançar consciência nas pessoas em relação aos seus problemas.   

Tu já trabalhou no IBGE e conta que essa experiência foi muito significativa para conhecer muitos problemas de Porto Alegre. Que trabalho foi esse no IBGE e quais são os problemas que tu vê ainda hoje?  

Eu fiz a POF, que é a Pesquisa Orçamentária Familiar, e fiz a PNAD, que é a Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio. Tu é obrigado a falar com diversas pessoas, de diversas classes sociais, de diversos lugares de Porto Alegre e região metropolitana. Até em Guaíba eu fui mordida por um cachorro, depois de uma entrevista. Aquelas coisas bem assim: carteiro e pesquisador do IBGE – ser mordido por um cachorro (risos). Eu passei por essa experiência. 

Eu acho que tudo isso te coloca dentro desse lugar de sair um pouco da tua bolha, porque como eu te coloquei, eu vim de uma família de classe média. Então, tu conseguir ter acesso a todas essas contradições te bota numa rotação de reflexão: que país é esse? E essa segregação. A falta de oportunidade. Tu vê gente com tanta grana, com tanta estrutura, com uma renda tão alta, por um trabalho que tu vê, assim, que quem mais trabalha nesse país é quem menos recebe. Aí todas essas injustiças revoltam.  

Quais lugares tu pensa em ocupar no futuro? Tu já pensou, por exemplo, em ir para o Executivo ou quer te manter no Legislativo?  

Eu estou fazendo mestrado. Eu penso em fazer um concurso público e sair da política em algum momento e viver a política de outra forma, porque, como eu disse, eu sou militante. Independentemente de ter cargo ou não, a gente segue fazendo política, e às vezes até com mais liberdade. Então, não penso em ter carreira, não.   

Mas tu, por exemplo, tem um forte engajamento com os jovens. Tu foi a vereadora mais votada na última eleição.  

Mas não vou ser jovem sempre, né? (risos) O tempo passa. Eu entrei com 27 anos e agora eu tô com 35. A gente quer viver outras coisas, porque a política te consome. Pra tu ser o mais votado, tu abre mão de muita coisa, e isso as pessoas não concebem, muitas vezes. O homem branco engravatado chega em casa e ele vai ter uma empregada, uma esposa, ele tem lugar na sociedade. E a gente, não. A gente tem que se ferrar e ainda tem que estar aqui produzindo, militando pra caramba para conseguir ter esse lugar, esse posto. Então, não sei se vale a pena, sabe? Não sei. Acho que a gente tem que pensar, junto, dentro da coletividade. É meio desumano, né?  

Tu também já foi professora, certo? Foi por quanto tempo?E tu pensa em retomar esse trabalho?  

Cinco anos.  Não no Estado, porque o Estado paga muito mal. Mas eu penso até o mestrado nesse sentido. Ano passado, quando eu fiz a seleção, era buscando outros concursos, melhores, na área da educação.  

Tu vê algum otimismo para os próximos anos, principalmente para Porto Alegre, de conseguir uma maior representatividade? 

Eu estou bem otimista, no sentido de a gente conseguir impor uma derrota ao Melo, resgatar alguns espaços de construção da cidade, abrir espaço para novas contradições. Eu acho que a gente simplesmente ocupar o paço municipal não vai resolver problemas que são da dinâmica da cidade. A terceirização, as parcerias público privadas, os contratos, vão continuar existindo, mas eu acho que coloca a esquerda em um outro lugar, mais próximo, inclusive, do que a gente consegue fazer hoje de pressão no governo federal. Esse é um governo de conciliação, que se senta com todo mundo para debater, e organizar a pauta. Aqui, sendo mais próxima, acho que a gente vai ter mais capacidade de fazer pressão dentro de uma esquerda que tem tendência a se institucionalizar, a cooptar a pauta e a agenda política dos empresários. Eu acredito que aqui a gente tenha capacidade de colocar novos problemas para o nosso povo pensar e refletir, e não só essa polarização idiota, de discussões que não avançam e que não permite que as pessoas enxerguem os reais problemas da cidade.   

“Ah, e o fascismo?” Mano, o fascismo e o abstrato não dialogam. E não só não dialogam, não faz sentido. O que é o fascismo? É a falta d’água? A falta de luz? A falta de creche? A violência policial? Acho que tem que dar um conteúdo maior para a pauta política, que hoje ainda está anuviada.  

Sobre a eleição municipal deste ano, como tu vê a chapa aqui da esquerda? Tu chegou a cogitar ser vice? 

Não, não. A gente tem uma responsabilidade aqui com a manutenção do mandato. E não só a manutenção do mandato, mas a manutenção das cadeiras que a gente conquistou enquanto PSOL. A gente acha que o Legislativo é tão importante quanto a luta mais geral, e a campanha mais geral, para derrotar o Melo, porque te dá uma estrutura. Então, nesse sentido, eu nem cogitei. 

Acredito que a gente conseguiu fazer uma composição com as forças que existem hoje na cidade. Então, para além do nome do indicado, acho que é uma composição das forças de esquerda que atuam hoje na cidade. Isso é algo que é legítimo e tem que ser respeitado. Agora, como vai ser a campanha? São outros 500. Isso também tem que ser disputado, até porque a gente quer derrubar o Melo. Eu, em especial, não aguentaria mais quatro anos dessa cidade neoliberal, porque estamos perdendo coisas que a gente nem tem dimensão. Eu acredito que tem que tensionar, fazer uma disputa tão grande quanto foi pelo nome, para que a gente tenha uma campanha decente. De rua. De diálogo. Que saia dessa polarização idiota, mesquinha, que emburrece as pessoas, que afasta as pessoas.  

E que a gente consiga conversar sobre os problemas que as pessoas passam no dia a dia, do “busão”, da falta d’água, da violência policial, da falta de emprego nessa cidade. Mano, problema é o que mais tem. O governo está enquadrado, também, com a questão da CEEE (Equatorial), não está tão popular quanto estava lá no início. Não é o momento mais forte deste governo. Então,  é usar de todas essas contradições, os problemas conjunturais, da crise climática, da privatização da CEEE e ir para cima. Mas, isso é uma vontade, né? Vontade de derrotar o governo nós temos, agora, condições objetivas a gente vai ter que ver aí no processo, até chegar o 16 de agosto lá, quando inicia o jogo.  

Como e onde tu vê o racismo explícito? Por exemplo, o Rio Grande do Sul tem toda essa simbologia bem racista no hino. Como é pra ti, como vereadora, estar ocupando esses espaços e ter que enfrentar isso?  

Olha, a gente já tinha há um bom tempo consciência, antes de entrar aqui, de que aqui era um espaço da burguesia da cidade e que a gente, obviamente, seria persona non grata. A gente já tinha essa “vacina”, essa compreensão. Nunca romantizei o parlamento, nunca romantizei a representatividade. Sempre achei que ia ser duro. E é duro. Mas é uma opção. É uma militância. É um trabalho. É uma tarefa que tem que ser feita. A gente tenta executar ela da melhor forma possível, sabendo de todas essas contradições, que é o que a gente enfrenta desde criança, no dia a dia.   

Sempre estudei em colégio particular e sempre fui a única aluna negra. Entrei na UFRGS antes das cotas. Então, para mim, ser a única não foi uma questão, porque eu já vim acostumada a ser a única em outros espaços. É violento? É violento. É injusto. É desigual. A gente não consegue aprovar projeto. E isso é a Câmara de Porto Alegre. Acho que tem que ser honesto com as pessoas nesse sentido, mostrar como é essa dinâmica, como é que funciona e se organizam os interesses e como eles se utilizam disso daqui pra aprovar e legitimar as suas vontades e seus projetos.   

A pauta étnico racial foi propulsora da militância de Karen (Foto: Câmara Municipal de Porto Alegre)

O Matheus Gomes, por exemplo, não levanta no hino.   

Ele está aqui do lado, me esperando para uma reunião.  

Tu também não levanta no hino?  

Isso. Isso veio lá da UFRGS, das formaturas. A gente começou a questionar. Em 2012, teve uma intervenção do Coletivo Negração, na Caminhada Farroupilha. Fizeram essa intervenção com a errata do hino: “povo que não tem virtude, acaba por escravizar”. Dali, surgiu a criação do Coletivo Negração, que foi o primeiro coletivo de cotistas dentro da universidade, e dali veio toda essa problematização que era uma problematização que o Oliveira Silveira já trazia lá trás. Então, é uma luta que tem uma história longa, bonita e a gente só dá continuidade a ela ao não se levantar.   

A última pergunta é: o que tu diria para os jovens que querem ir para a política, mas veem que é como um local impossível de acessar?  

A política institucional é difícil de acessar, sim. E que bom que vocês acham isso, porque isso quer dizer que vocês não são um bando de alienados (risos). Porque é difícil. Mas, ao mesmo tempo, (é preciso) reestruturar esse lugar da política, né? Tudo o que a gente faz é política. Os nossos corpos são políticos. E a ideologia dominante faz a gente conceber a política só enquanto a política institucional, localizada dentro do parlamento. Eu acho que quando a gente transgride isso, quando a gente pensa fora da caixa, que a gente vê o nosso real poder. Como foi em 2013, que as pessoas ocuparam as ruas, que é o espaço mais democrático que a gente tem.  

Então, quando a galera faz uma batalha de rima, quando a galera está no slam, quando a galera está fazendo um evento, quando a galera está em grupo no rolêzinho – sabe aquele movimento dos rolêzinhos, que teve em 2014 etc. – tu vê né? Como a grupalização da juventude assusta. Assusta porque o jovem tem essa questão de “ser jovem” e não ter se adaptado ainda a todas essas contradições da família, do emprego, da dinâmica do trabalho. Então, são seres que questionam. Isso grupalizado, assusta.  

Acredito que é pensar fora da caixa, não se restringir a essa agenda que diz: “Aí, seja um representante”, “Aí, vote”. Mano, política é muito mais do que isso.  A gente tem que reforçar isso, porque é uma corrente ideológica muito forte, inclusive dentro da esquerda, que coloca que a única forma de fazer política é sendo representante ou elegendo alguém. Isso é uma puta de uma balela. Então, eu diria isso. Que bom que vocês pensam isso.  

A política institucional é um saco, mas tem muita coisa que a gente pode contribuir por fora. Inclusive para questionar, hoje, quem está aqui dentro. Nosso papel, enquanto trabalhadores, é isso. É questionar, é lutar, é pressionar. Não só querer se integrar, se inserir.   

Paola De Bettio

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