Leopoldenses relatam experiência traumática com as enchentes

Município do Vale dos Sinos foi um dos mais atingidos pela catástrofe climática que assolou o estado

Pouco mais de um mês após as enchentes atingirem o Rio Grande do Sul, as cidades buscam se recuperar dos estragos. De acordo com dados da Prefeitura de São Leopoldo, localizada na Região Metropolitana de Porto Alegre, mais de 180 mil pessoas foram atingidas pelas enchentes do mês de maio, o que representa 82% da população local. Pelo menos 34 mil casas ficaram embaixo d’água.

No dia 3 de maio, o prefeito Ary Vanazzi (PT) orientou a população leopoldense a sair de suas casas após alerta emitido pela Defesa Civil do governo do estado, que já previa risco de inundação severa, com superação da cota de alerta dos diques de contenção, causando a maior enchente da história do Vale dos Sinos. Naquele momento, a Casa de Bombas do bairro Santo Afonso, em Novo Hamburgo, colapsou pelo grande volume de chuva. A estrutura protegia a cidade até um limite de 9,5 metros do Rio dos Sinos, porém, o nível chegou a quase 10 metros.

Com isso, muitos moradores da região tiveram que decidir se ficariam ou não em suas próprias residências. No bairro Santos Dumont, na divisa com o município de Novo Hamburgo, a dona de casa Edília da Silva, de 82 anos, conseguiu buscar abrigo antes de sua moradia ser atingida. “Durante os 30 anos que moro aqui, mal alagava. Eu e meus familiares não acreditávamos que a nossa casa seria completamente tomada pela água”, desabafa.

Edília conta que naquela sexta-feira, 3 de maio, sua filha a buscou de carro pela manhã, levando apenas alguns pertences, na esperança de logo retornar para a casa, localizada na Rua Rio Grandino Ferraz Kruel. Entretanto, o que ela não esperava é que permaneceria distante do seu lar por mais de um mês. A dona de casa segue abrigada na residência da sua filha, no bairro São Jorge, em Novo Hamburgo. “Eu perdi todos os móveis, meus desenhos e pinturas, fotos de família e todo meu jardim, que tinha uma importância significativa para mim”, lamenta.

Estado da sala de estar da casa de dona Edília após a enchente. Foto: Gabriel Jaeger/Beta Redação.

Leandro Rick, de 58 anos, filho de Edília, mora na mesma casa com sua esposa Isabel, mas ambos decidiram continuar no local, mesmo com o alerta da Defesa Civil para evacuarem da região. “Nossa casa recém tinha sido reformada, moramos no primeiro andar, já que o segundo estava servindo como depósito de materiais de construção. Jamais imaginei que a água chegaria a 2 metros de altura. No desespero, conseguimos salvar alguns eletrodomésticos, roupas e documentos, mas perdemos muitos móveis novos”, conta.

Para ele, o final de semana, de 4 e 5 de maio, foi traumatizante, já que a família estava na parte de cima, assistindo a água tomar conta de tudo. Na madrugada de sábado para domingo, a situação se tornou caótica, pois estavam sem luz, com pouca água e comida, e sem bateria nos celulares para poderem contatar alguém ou pedir por resgate. Naquele momento, eles haviam percebido que precisariam sair dali o quanto antes.

“Ficamos sabendo que nos resgates de barco feitos pela própria comunidade, estavam priorizando pessoas idosas e deficientes. Ouvíamos muitos gritos de socorro e isso atingia fortemente o nosso psicológico. Vi pessoas nadando com cachorros em seus braços, buscando um lugar mais alto para se protegerem enquanto o resgate não chegava”, recorda.

Entulhos no bairro Santos Dumont, em São Leopoldo. Foto: Gabriel Jaeger/Beta Redação.

Já Isabel Wasem, de 60 anos, manifestou muita indignação contra a ausência de atitudes das entidades governamentais, tanto federal quanto estadual e municipal. “Foram os vizinhos que se mobilizaram e salvaram a gente e todos os moradores que ficaram ilhados. Se dependêssemos de ações do poder público, ficaríamos desassistidos por muito mais tempo, o que causaria mais sofrimentos, tragédias e mortes”, desabafa.

Isabel também relata que foi assustador o momento em que percebeu que seria muito difícil sair de sua casa alagada, já que era arriscado para o barco chegar até a residência, pois as grades do portão estavam submersas e poderiam danificar ou perfurar o barco e até mesmo ferir os resgatistas. Com muito esforço, tiveram que nadar, pular as grades da escada da casa e se apoiar em uma caixa de luz, para enfim, chegarem ao barco e poderem, posteriormente, se abrigar em um lugar seguro.

“Graças a Deus, ainda existem pessoas com bom coração. Eu e meu marido estamos abrigados em uma casa que a patroa dele nos cedeu, no bairro Ideal, em Novo Hamburgo. Não tínhamos onde ficar, já que a água da enchente demorou a baixar”, explica Isabel.

De acordo com a prefeitura de São Leopoldo, os diques do município não se romperam e foram vitais para evitar uma catástrofe ainda maior. O bairro Santos Dumont ficou semanas sem energia elétrica e quase um mês sem água, o que acarretou em uma demora ainda maior para os moradores poderem limpar suas casas e tentar reconstruir as suas rotinas novamente.

Heróis anônimos

Em meio a todo o desespero vivenciado pelas pessoas da região, surgiu um pescador para salvar a população, conhecido como Lambari, chamado Daniel Stella da Silva, de 46 anos. Ele conta que naquele 3 de maio estava de folga, quando seu celular tocou: era um pedido de ajuda de seu amigo. Silva se prontificou e levou seu barco. No primeiro momento, no bairro Santo Afonso, em Novo Hamburgo. Posteriormente, no bairro Santos Dumont, em São Leopoldo.

Daniel Stella e sua irmã Yasmim realizando resgastes de barco, em selfie registrada durante o socorro às vítimas. Foto: Arquivo Pessoal/Daniel Stella.

A partir daquele instante, ele passou por momentos de tensão e emoção em que conseguiu ajudar cerca de 400 pessoas, graças ao apoio de amigos e da Brigada Militar que se solidarizaram com a situação. “Foi muito difícil retirar o pessoal, havia muita escuridão e uma correnteza forte. Ficamos até as 3h e combinamos de voltar aos resgates às 6h”, conta.

Voluntários conversam durante a madrugada sobre a melhor forma para tentar resgatar pessoas no bairro Santos Dumont. Vídeo: Arquivo Pessoal/Daniel Stella.

De acordo com o pescador, só havia mais um barco, do seu amigo Diogo, para salvar tanta gente. Apenas no dia seguinte, começaram a chegar mais barcos. Para Lambari, o resgate mais emocionante foi quando encontraram dez pessoas no segundo piso de um prédio. “Tivemos que colocar uma escada em um dos barcos para as pessoas descerem. Faltava uma mulher, dizendo que não conseguiria. Ela chorava muito, mas tentamos acalmá-la para descer. Usava uma prótese solta, que dificultou muito a sua descida. Levantamos a escada, e meu amigo Diogo subiu para auxiliá-la. Foi uma festa quando ela chegou à BR-116, local para onde todos foram levados”, recorda.

Amigos Richard e Cleber salvaram dois bebês. Foto: Arquivo Pessoal/Daniel Stella.

Além disso, haviam falsos pedidos de socorro, saques a casas comerciais e residenciais completamente submersas. O pescador correu risco de vida durante todos os salvamentos e, para dificultar ainda mais, houve uma situação em que um homem acertou um tiro em seu barco. Com isso, Lambari passou a ajudar as pessoas apenas durante o dia.

Ausência de prevenção

Segundo a climatologista Karina Lima, a intensidade dos eventos meteorológicos no ano passado foi justificada pela influência do fenômeno El Niño, o que já deveria ser um alerta para as autoridades sobre os riscos. Neste ano, os desastres também são consequência do aumento do aquecimento global antropogênico, causadas pelas ações do homem e de vulnerabilidades locais.

Na visão da cientista, não há preparo do poder público para enfrentar o cenário de mudanças climáticas no estado. “Tivemos vários desastres no RS durante um ano. É necessário muito trabalho para nos adaptarmos a essas mudanças climáticas extremas, com o intuito de diminuir os prejuízos aos ecossistemas e à população”, conclui.

Gabriel Jaeger

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