A biblioteca Dilan Camargo tinha um acervo de quatro mil livros e foi fundada com o objetivo de propagar a cultura na vida de milhares de pessoas, principalmente para os moradores do bairro Harmonia, em Canoas. O espaço era utilizado para a realização de eventos e, claro, retirada de livros. Mas, após as enchentes do Rio Grande do Sul, o acervo foi totalmente destruído, impactando diretamente mais de 100 pessoas que visitavam a biblioteca mensalmente.
Canoas tem cerca de 347.657 habitantes, foi uma das cidades gaúchas mais afetadas pelas enchentes, mais de 50% da área ficou submersa, como o bairro Harmonia, local onde moram mais de 30 mil pessoas.
“Não sobrou uma casa no bairro, virou uma cidade fantasma”, relata Jairo. O escritor de 62 anos, que conversou com a gente na casa em que está morando agora, em Porto Alegre, conta que além da biblioteca ele perdeu a própria moradia, que ficava no mesmo terreno.
Além disso, ele complementa que tinha o telefone de todos os frequentadores da biblioteca em fichas, que ficaram na enchente. Então, não está sendo possível contatar os seus visitantes no momento. Além da Dilan Camargo, Jairo relata que todas as bibliotecas de escolas do bairro foram completamente alagadas.
Logo após o desastre, muitos amigos de Jairo se ofereceram para enviar livros para recompor o acervo da biblioteca. Contudo, portas, prateleiras e janelas terão que ser trocadas, além de um computador. “Eu penso mais na biblioteca do que na minha casa”, reflete. O plano realista é reabrir o espaço só no ano que vem.
A luz cultural no Harmonia
Todos os meses, escolas municipais e estaduais compareciam no ambiente para conversar com autores. Dentre eles, o escritor Mário Pirata, em sua visita, conseguiu reunir 110 crianças na biblioteca, cuja capacidade é de apenas 50, sendo necessário abrir sua garagem para abrigar o público. Outros propagadores de cultura que já fizeram eventos na biblioteca foram o escritor Alexandre Brito e a contadora de histórias Bárbara Catarina.
Alexandre, escritor dos livros infantis como o “Circo mágico: poemas circenses para gente pequena, média e grande” e “Museo desmiolado”, conversou com a gente por WhatsApp e conta que já foi a eventos na biblioteca duas vezes. Relembra que em sua primeira visita, foi acolhido com muito carinho, onde esperavam turmas de alunos de escolas da região, com quem teve uma ótima conversa. Da segunda vez, esteve na companhia do músico gaúcho, Zé Cardípia. Para Alexandre, atividades desenvolvidas por Jairo e a biblioteca Dilan Camargo têm o poder de inserir o sentido emancipador do livro nas comunidades onde atuam.
“É como se fosse um parque de diversão feito de histórias, poemas, fábulas e narrativas que projetam a imaginação dos leitores para além da realidade objetiva que experienciam, ampliando o horizonte do possível e das possibilidades de ser,” conclui.
Já a contadora de histórias, Bárbara Catarina conta que participou de um evento na biblioteca em 2023 e foi cercado de força e beleza, onde reuniu pessoas que são apaixonadas por livros. Apesar de muitas áreas culturais conversaram naquele dia, todas tinham algo em comum que as trouxeram a aquele lugar especial: a literatura.
Conhecendo Jairo desde 2009, ela sabe da importância que ele tem dentro da comunidade.
“O Jairo no bairro Harmonia é luz. Ele tem uma biblioteca com uma qualidade literária que é, foi e voltará, após as enchentes, a ser a Dilan Camargo. Acredito que, agora, após a enchente, a comunidade que tanto se serviu desta luz, deva continuar iluminando. Também creio que logo mais ela estará como o grande farol a iluminar estes barquinhos perdidos neste mar revolto”, comenta.
Após o maior desastre climático já registrado no Rio Grande do Sul desde 1941, o estado viveu momentos de terror durante o mês de maio. Naquele ano, a marca do Guaíba chegou a 4,76 metros, equivalente a 59 centímetros abaixo do atual desastre. No ano de 2024, o nível superou os 5 metros. Diversas cidades foram afetadas e, algumas, desapareceram debaixo d’água. Mais de 600 mil pessoas ficaram fora de suas casas.
O começo de um sonho cultural
A história da biblioteca nasce no final de 2008, quando o então escritor de diversos livros como “Zupt e outros poemas” e “Pedro, O Menino Que Salvou o Sinos”, Jairo Luiz de Souza, teve a ideia de abrir uma biblioteca comunitária no terreno de sua casa, localizada na Rua José Veríssimo, no bairro Harmonia, Canoas.
Para isso, pediu doações através do seu Facebook e, após começar a tomar forma, a comunidade conheceu o espaço e auxiliava a iniciativa, levando livros para enriquecer o conteúdo do local. Assim, então, foi criada a Biblioteca Comunitária Simões Lopes Neto, que posteriormente seria renomeada para Biblioteca Comunitária Dilan Camargo.
Dilan, que foi patrono da Feira do Livro de Porto Alegre em 2015, conta que conheceu Jairo em uma feira do livro em Esteio e percebeu que ele é uma pessoa realmente comprometida com a cultura e, principalmente, com a literatura.
“Fiquei honrado com esse convite, mas me senti muito comprometido pois ter uma biblioteca comunitária com o seu nome, é uma responsabilidade. Além disso, é o melhor prêmio que se pode receber na sua jornada literária, é algo impagável” explicou ele por áudio por WhatsApp
Autores de clássicos como “Brincriar” e “A Fala de Adão”, Dilan enxerga o impacto da biblioteca no bairro como altamente positivo, porque em várias ocasiões as crianças, jovens e até os pais se reuniram no local para lerem e tirarem livros. Com todo trabalho de seu amigo no bairro Harmonia, Dilan acha que Jairo merece ter mais apoio dos setores públicos, para que reconheçam a importância do seu trabalho comunitário em prol da literatura e da formação de leitores. Inclusive, por conta de a biblioteca passar pelo seu quinto evento climático, que afetou as suas estruturas, incluindo as enchentes de setembro de 2023.
“Tenho total segurança de dizer que ele é um agente cultural de uma enorme importância”, explica Dilan sobre seu amigo.
Vivendo pela cultura
Desde criança, Jairo, percebeu seu gosto por escrever. Ainda assim, o primeiro contato com os textos escritos se deu de forma repentina. Em 1978, ele foi letrista da banda de amigos chamada Manga Rosa, e, a partir daí, começou a pegar gosto, escrevendo até os 20 anos. Em 1980, se mudou para Porto Alegre deixando a escrita de lado, ainda que tenha continuado sendo um leitor assíduo. Mas, por conta de um infarto que sofreu em 2002, teve que repousar em sua casa. Assim, a vontade de escrever ressurgiu, ao fazer cerca de 200 poemas pequenos, que se tornaram o seu primeiro livro: “Eu… um rosto Poesias e Letras”, lançado em 2003.
Apesar de ter estreado como escritor, Jairo não tinha interesse em continuar uma carreira nesse ramo, porém, ao ajudar sua esposa professora a corrigir provas dos alunos, percebeu muitos erros e sentiu que tinha que auxiliar. Assim, escreveu livros infantis em forma de poesias e rimas sobre esse tema. Em 2004, lançou 1.000 cópias do livro “Era Uma Vez Com Rima Ensinando Português” e “Quem diria… Matemática Virou Poesia”, em 2005, sendo seu maior sucesso, vendendo mais de 5.000 exemplares, principalmente, para professores.
Nesse mesmo ano, ingressou no curso de Letras na Universidade La Salle, pois era um sonho pessoal realizar uma faculdade. Depois, começou a ficar cada vez mais engajado no mundo da cultura, escrevendo diversos livros, especialmente, na área infantil, como “O Planeta dos Sonhos e o Baú da Vovó Dorvina”. Também publicou o livro de poemas infantil, “Mariana”, que virou um CD musical, com a participação do músico Zé Cardípia, que se transformou em “Mariana em Canto”. Ao todo foram 20 livros publicados.
Jairo também atuou como Presidente da ACE – Associação Canoense de Escritores de 2005 a 2007 e, posteriormente, de 2011 a 2013. Os seus principais deveres eram burocráticos, como cuidar de documentações, participar de reuniões e conseguir espaços para expor e vender os livros dos membros da instituição. Ao final de 2013, sua vida teve uma mudança radical: a necrose na perna direita teve como desdobramento a amputação da mesma.
O sonho de uma reconstrução
“Sem arte tu não consegue sobreviver”, essa é a opinião de Jairo sobre a cultura, ele comenta que sem literatura não conseguiria manter as esperanças em um momento como esse. Ele também relata que enxerga a existência de dois “Jairos”, o primeiro sendo o escritor que depois de escrever para crianças, ficou maravilhado, e mesmo não sendo um trabalho com boa remuneração, é uma forma que ele se enxerga capaz de se expressar.
O segundo é o Jairo coordenador da biblioteca, que ele julga ser mais importante do que o escritor, porque disponibiliza um espaço de acesso aos livros, encontros com autores. O ambiente é pequeno, porém tem muito significado para si mesmo e para toda comunidade, que muitas vezes não conseguem comprar uma passagem para o centro de Canoas, onde está a Biblioteca Municipal. “Eu assumi uma responsabilidade com a comunidade”, finaliza.
Olhando para um futuro, acredita que o campo da cultura vai se reerguer, mesmo que lentamente. Para isso, comenta que o ideal seria que as feiras de livros se mantivessem, mesmo que em menor escala. “Não podemos ficar estagnados”, complementa. Jairo mesmo tendo passado por diversas dificuldades com as enchentes ainda se mostra muito preocupado e engajado em como melhorar e manter a cultura viva nesse momento.
Na missão de recomeçar do zero, Jairo está recebendo apoio de seus conhecidos que estão o ajudando com pix para o CPF: 40602893020. Quem quiser saber outras formas de ajudar a biblioteca, pode entrar em contato pelo telefone de Jairo: (51) 982597059.