“Leite destruiu em 74 dias um código ambiental construído em 9 anos”, analisa especialista

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Francisco Milanez, da Agapan, critica governo do estado, mas iniciativas municipais trazem exemplos de prevenção

Estudamos desde a infância sobre o clima, o meio ambiente e os impactos que a falta de cuidado com o planeta podem causar em nosso cotidiano. Esse discurso todo mundo sabe de cor e salteado, mesmo que não coloque em prática. “Separe o lixo corretamente. Não deixe a torneira ligada por muito tempo. Não jogue lixo no chão”, são exemplos de frases ditas por especialistas em palestras escolares. Como forma de apelo, muitos citam as consequências de ações contrárias a essas, na tentativa de induzir os ouvintes a, de fato, cuidar do meio ambiente. No entanto, esse discurso parece não fazer mais sentido.

Somente em 2023, o Rio Grande do Sul viveu três enchentes com vítimas fatais. Em junho, 16 pessoas morreram após um ciclone atingir o estado. Em setembro, outro fenômeno semelhante deixou 54 mortos. Em novembro, chuvas mais brandas mataram outras cinco pessoas. Ao todo, foram 75 mortes ao longo do ano passado.

Porém, nenhum desses eventos chegou perto do que vivenciamos entre abril e maio de 2024. Desde que as chuvas iniciaram, 478 municípios gaúchos registraram estragos. Os dez dias ininterruptos de chuva fizeram com que 178 pessoas morressem e 34 ficassem desaparecidas, até o dia 27 de junho. Uma tragédia jamais vista, mas que trouxe, novamente, fortes críticas à legislação ambiental do estado.

“O Leite destruiu em 74 dias um código ambiental construído em 9 anos”, relata Francisco Milanez, diretor científico da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). Para o especialista, as mudanças na legislação ambiental estadual estão diretamente relacionadas à magnitude dos impactos das chuvas no estado. 

Francisco Milanez, diretor da Agapan, uma das primeiras organizações ambientalistas do Brasil em defesa das pautas ambientais. Foto: Débora Ercolani/CMPA.

No auge da tragédia, o governo gaúcho foi alvo de duros ataques devido à quantia de verbas destinadas à Defesa Civil e ao enfrentamento das mudanças climáticas. Nesse contexto, em uma coletiva de imprensa, o governador Eduardo Leite (PSDB) disse que aquele não seria o momento para tais questionamentos.

“Não é hora de procurar culpados, não é hora de transferir responsabilidades. Vamos ter que trabalhar à altura que o momento histórico exige”, ele destacou. Contrariando a fala de Leite, Milanez argumenta que “o governador tem uma culpa simbólica por toda a destruição que estamos vivendo e que ele tem que pagar por esses crimes”. 

Recentemente, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu que o Plenário do STF vai julgar diretamente uma ação que questiona mudanças no Código Ambiental do Rio Grande do Sul. Essa ação foi apresentada pelo Partido Verde (PV), que acredita que as mudanças, feitas pela Lei 16.111/2024, enfraquecem as regras de proteção ambiental.

Prevenção em Santo Antônio da Patrulha e Cachoeirinha

Após a tragédia, a importância da prevenção ficou ainda mais evidente. “As administrações vão ter que investir em prevenção e adaptar as legislações e o plano diretor. Vão precisar ter plano de microdrenagem e macrodrenagem e fazer o trabalho preventivo”, reflete Rodrigo Massulo, prefeito de Santo Antônio da Patrulha, município da região metropolitana do estado.

Em junho de 2023, o município do litoral norte foi extremamente afetado por um ciclone extratropical. Na ocasião, mais de 38 mil moradores, entre os 42 mil residentes da cidade, foram atingidos direta ou indiretamente. O município ficou isolado devido à queda de pontes e o prejuízo financeiro ultrapassou R$ 7 milhões. Após ver os estragos causados pela chuva, a prefeitura percebeu a necessidade de ações de prevenção mais eficientes.

“Nós faríamos uma limpeza superficial. No entanto, nós realmente enxergamos a necessidade dessa limpeza profunda depois do acontecimento de 2023. E agora entendemos que isso deva ser uma política pública permanente, anual, já que eventos climáticos extremos são o nosso novo normal”, destaca Massulo.

Segundo a prefeitura, o serviço de mitigação realizado se resumiu à hidrojateamento de bueiros e dragagem de arroios que cortam o município. A operação teve o custo de aproximadamente R$250 mil reais. Em maio de 2024, quando o volume de chuvas foi quase o triplo do registrado em junho, os estragos foram significativamente menores. “Neste ano, com muito mais chuva, não tivemos nada de alagamento em nenhuma rua da zona urbana e nenhuma casa inundada”, relata o prefeito. 

Apesar das ações terem dado bons resultados, o diretor científico da Agapan não enxerga que essa seja uma solução a nível maior. “Isso é impraticável [a nível estadual]. Não há draga no mundo para dragar os rios enormes que nós temos no estado”, ele diz. Questionado sobre soluções para reduzir as consequências de eventos climáticos, Milanez reflete: “a natureza é muito poderosa, mas talvez dê para reduzir os danos. A primeira coisa que tem que ser feita é a recomposição das matas, principalmente as matas de encostas que, existindo, podem evitar inundações e deslizamentos de terra”, explica.

Prefeito Rodrigo Massulo, de Santo Antônio da Patrulha, assinou diversas iniciativas para o enfrentamento de enchentes após ciclone de 2023. Foto: Arthur Cunha / Prefeitura de Santo Antônio da Patrulha.

Um exemplo do que diz o especialista é a floresta Mato do Júlio, situada em Cachoeirinha, que abrange mais de 200 hectares de mata preservados. “Essa é uma floresta de banhado e retenção hídrica. Ela atua como uma esponja, absorvendo e retendo a água”, explica Leonardo da Costa, ambientalista e membro de um coletivo de voluntários que realiza ações de preservação no local. Segundo o grupo, aproximadamente 35% da água que inundou Cachoeirinha foi contida pela área. Costa estima que entre 7 e 8 mil pessoas teriam sido afetadas a mais pelas inundações se o sistema não existisse.

Para Milanez, a flexibilização de políticas ambientais tem correlação com o que estamos vivendo — e um dos principais pontos está conectado à responsabilidade simbólica do governador Eduardo Leite. “Muito pior do que mudar uma lei é dar um mau exemplo sendo governante. Ele está dizendo para o cidadão que ‘pode fazer à vontade porque eu sou contra o meio ambiente’. Essa responsabilidade simbólica é a de governante. Não tem lei específica sobre isso, mas eu acho que devia ser julgado”, finaliza.

Mato do Julio, em Cachoeirinha, ajudou na contenção de alagamentos na cidade. Foto: Coletivo Mato do Júlio.

Após o fechamento desta edição, o Governo do Rio Grande do Sul enviou nota aos questionamentos da reportagem na qual relata estar intensificando seus investimentos para fortalecer o sistema de monitoramento e resposta a desastres naturais.

Confira o posicionamento na íntegra:

Em resposta às críticas sobre a legislação que permite a construção de barragens em áreas de preservação permanente (APPs), é importante destacar que essa possibilidade já estava prevista na legislação federal para atividades de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental, como geração de energia e saneamento. A autorização sancionada no Estado também visa apoiar a produção de alimentos, considerada uma atividade essencial.

É crucial esclarecer que essa permissão é aplicada apenas como último recurso, quando comprovado pelo empreendedor que não há alternativas viáveis. Além disso, a legislação estadual mantém a exigência de licenciamento ambiental criterioso, incluindo compensações ambientais necessárias.

O Projeto de Lei 16.111/2024, que autoriza a construção de barragens e açudes em Áreas de Preservação Permanente (APP), foi iniciativa do legislativo estadual e requer regulamentação para entrar em vigor.

O governo do Rio Grande do Sul está intensificando seus investimentos para fortalecer o sistema de monitoramento e resposta a desastres naturais. Por meio do Tesouro do Estado, já foram destinados R$ 148 milhões para os Fundos Municipais de Proteção e Defesa Civil e R$ 5,7 milhões para manutenção e qualificação do radar meteorológico da Faculdade de Meteorologia da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel).

O governo estadual investiu R$ 25,93 milhões na melhoria do monitoramento meteorológico. Um novo radar está na cidade de Montenegro e deverá ser instalado até o final do segundo semestre de 2024. O serviço, que será prestado pela empresa Climatempo, inclui o estudo técnico de infraestrutura, operação do radar e monitoramento contínuo das condições climáticas.

Essa transferência de recursos tem como objetivo principal impulsionar iniciativas de resposta e de recuperação nos municípios afetados por desastres.

Simultaneamente, entre 2023 e 2024, o governo estadual comprometeu-se com R$ 579 milhões para gestão e mitigação de desastres naturais. A Lei Orçamentária Anual de 2024 prevê um aporte de R$ 117 milhões para essa finalidade, com um adicional de R$ 200 milhões anunciados após a tragédia de maio de 2024.

Desde outubro de 2023, o Estado implementou as Estratégias para as Ações Climáticas do ProClima2050, focando em transição energética, redução de emissões de GEE, educação ambiental e resiliência climática. Para o ciclo 2023/2026, R$ 65,3 milhões foram designados para projetos do ProClima2050, com R$ 20 milhões já aplicados na fase inicial de estudos.

O governo gaúcho está intensificando seus esforços em projetos estratégicos voltados para a adaptação, mitigação e resiliência frente às mudanças climáticas. Além dos investimentos em ações emergenciais, destacam-se os seguintes projetos em andamento:

  • Estratégias para as Ações Climáticas do ProClima2050: lançadas em 24 de outubro de 2023, estas estratégias orientam as medidas estaduais para mitigação dos GEE e fortalecimento da resiliência climática. Os quatro pilares da estratégia incluem transição energética justa, redução de emissões, educação ambiental e resiliência climática.
  • Programa Estadual de Revitalização de Bacias Hidrográficas: em fase de implementação, programa visa revitalizar as bacias hidrográficas do Estado, incluindo a elaboração de planos específicos para cada bacia.
  • Projeto de Educação Ambiental para Riscos de Desastres: objetiva implementar a Política Estadual de Educação Ambiental, formando agentes socioambientais e fortalecendo a conscientização sobre prevenção e mitigação de desastres ambientais.
  • Plano da Agricultura de Baixa Emissão de Carbono (ABC+ RS): direcionado à agropecuária gaúcha, este plano busca aumentar a eficiência e resiliência dos sistemas produtivos, além de controlar as emissões de GEE.
  • Capacitação do Sistema Estadual de Proteção e Defesa Civil: programa destinado à capacitação contínua dos integrantes da Defesa Civil, fortalecendo a resposta a emergências climáticas e ambientais.

Bárbara Cezimbra de Andrade

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