Jamaika, o líder do Quilombo dos Machado

Jamaika segurou o cabo do esfregão a conversa toda, depois de ter limpado o chão da cozinha mais de uma vez para esperar o recebimento de uma entrega de cestas básicas do Mesa Brasil, programa de assistência do Sesc que funciona como um grande banco de alimentos. Chovia sem parar na manhã de sexta-feira, criando um clima de tensão em Porto Alegre. A Avenida Sertório, que dá acesso ao Quilombo dos Machado, já tinha pontos de alagamento.

Cheguei ao Quilombo pela esquina do cruzamento entre as ruas Rocco Aloise e Dona Alzira. Na esquina, há uma pequena pracinha com balanço e outros brinquedos, além de uma casa com um desenho na lateral que tem escrito acima “Quilombo dos Machado”. De lá, sigo caminhando por uma rua estreita – que parecia ainda mais estreita por causa de um caminhão estacionado meio atravessado. Encontro um quadro de giz onde estava escrito “Amanhã e sexta NÃO! Haverá entrega de cesta. OBS: estamos encerrando”.

Atrás do quadro, duas mesas tinham algumas coisas espalhadas, entre sacolas e uma garrafa térmica grande. Atrás, uma cerca de madeira dividia o pátio da casa com a rua. A casinha de madeira pintada de verde, apesar de ser o lar de Rogério Machado, o “Negão Jamaica”, funciona como o principal ponto de distribuição de doações do Quilombo dos Machado. Pelo pátio, mais doações e um fogareiro com uma panela de alumínio grande. Quadros com orixás da umbanda estão nas paredes dentro e fora da casa.

A casa de Jamaika, que atualmente tem funcionado, também, como uma central de doações (Foto: Paola De Bettio/Beta Redação).

O líder e a capoeira

Luís Rogério Machado, o Jamaika, tem 43 anos e é o líder do Quilombo dos Machado. “O apelido veio do colégio, quando eu tinha 11 anos. Foi quando eu comecei a me identificar comigo mesmo, enquanto um homem negro. E comecei a usar dread. Nessa época eu já tava me preparando para fazer capoeira. Faço capoeira há mil anos”, disse. Ele tem a voz firme, que muda de entonação e de volume ao longo da conversa, mas, no geral, é muito enérgico. Sua voz transmite bem o que ele quer dizer para além das palavras. Às vezes, parece segurar o sorriso. Mas, quando ele começou a falar de si, falou mais lento e não parecia tão interessado como quando começou a defender os quilombolas e a criticar o sistema.

Dentro da casa, uma caixa plástica (dessas que costumamos ver em fruteiras) é a casa de dois filhotes de cães que são praticamente do tamanho de uma mão. Por todos os lados do cômodo há caixas de papelão com doações. Numa, perto da porta, uma gata dorme como se uma pessoa estranha não estivesse ali. “São minhas relíquias”, diz Jamaika sobre seus bichos.

Atualmente, Jamaika é educador popular, educador quilombola e capoeirista. Ele conta que já trabalhou em obras e “em tudo que viesse” para a sua sobrevivência. Mas considera o que faz agora como a sua especialidade. “A capoeira é a própria identidade do povo preto enquanto libertação, enquanto quilombo, enquanto vida, enquanto luta, identidade, ancestralidade. Durante todo esse tempo na capoeira, 30 e poucos anos, a gente vai se reestudando.” Ele fala na capoeira com grande admiração e até mesmo devoção.

É casado com Tamires. Eles estão juntos há 21 anos e se conheceram no colégio. Hoje, são pais do Lukas, de 12 anos, e agora esperam a Dandara, que deve chegar perto do dia 15 de julho. Ele conta que conversa com Dandara pela barriga: “Filha, te prepara”, assim como preparou Lukas para lidar com o racismo. “Nós, povo preto, já nascemos na luta. A principal luta é pela sobrevivência e contra o racismo. A gente já nasce sendo genocidado, dentro da barriga.”

Uma comunidade que cresceu e se tornou quilombo

Foram os avós de Jamaika, Laura e José, e a irmã de Laura, a Helena, as primeiras pessoas que moraram na comunidade. Helena teve a filha Lúcia, a quem Jamaika se refere como Tia Lúcia. A família, que veio de São Francisco de Paula e Santo Antônio da Patrulha, inicialmente ocupou outros terrenos da região, na porção conhecida como Vila Respeito, ao lado do atual território do Quilombo dos Machado. Essa evolução territorial e narrativa é mais bem explicada pelo Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS, volume 1: Cartografias contracoloniais, organizado pelas pesquisadoras do Núcleo de Estudos Geografia e Ambiente (NEGA), da UFRGS, Cláudia Luísa Zeferino Pires e Lara Machado Bitencourt. O estudo faz uma cartografia do Quilombo dos Machado.

“O Quilombo dos Machado tem de retomada 12 anos, mas de luta, do povo preto no Sarandi, 70 anos. Desde a vinda dos meus ancestrais, que é minha vó e meu avô”, afirma Jamaika, com muita ênfase na palavra “retomada”. De acordo com ele, é o quinto quilombo urbano de Porto Alegre certificado pela Fundação Palmares, e já passou pelo processo de relatório no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que são os relatórios antropológico, histórico e geográfico, todos já concluídos. A etapa agora é de cadastramento das famílias que compõem o território.

Para titulação, falta essa etapa, que o líder comunitário vê como um grande passo ainda. “É aquele lance de tem que esperar. Esperar, esperar, esperar e pronto. Então, a gente tá jogando essa capoeira, nessa espera. Quando eu digo esperar eu falo com maior desorgulho no coração, porque tantos ancestrais nossos esperaram, esperaram, esperaram, eles morreram esperando. Esperar é um genocídio do nosso povo. Há 524 anos, desde o nosso sequestro da África, a gente tem que esperar”, lamenta Jamaika.

No Quilombo tem haitiano, venezuelano, tem “um pessoal do Piauí”, e “uma grande frota” de Parambu e Assaré, no Ceará. “E, também, famílias pretas e não pretas, que não tem condições de pagar um aluguel, não tem condições de pagar um “Minha Casa, Minha Dívida”, completa Jamaika, criticando o programa de habitação.

O chefe do setor Quilombola do Incra no Rio Grande do Sul, Sebastião Lima, confirma que o Quilombo dos Machado está em fase de finalização o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação – RTID.  Ele explica que, depois de concluído, o relatório será publicado nos Diários Oficiais do Estado do Rio Grande do Sul e da União, além de notificar caso existam proprietários, que terão um prazo de 90 dias para contestações.

Ainda segurando a vassoura, Jamaika já articula as palavras com mais ênfase e fala num ritmo mais alto e rápido. Além disso, gesticula mais. O líder demonstra toda sua impaciência e descontentamento. “Ou é esperar, ou é não. Todos os dias tem um não”. E então, ele fala em ritmo cadenciado uma porção de “nãos” e “não, não dá, não consigo, não conseguimos fazer isso”. Vez ou outra ele coloca as duas mãos segurando a vassoura, às vezes, estica o braço direito e gesticula as mãos. De minutos em minutos, olha para a rua.

Sobre o risco desse quilombo ou qualquer outro ser retirado de seu território, Sebastião Lima afirma que “qualquer obra que possa impactar as comunidades quilombolas deve obedecer a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que diz que deve acontecer consulta e concordância da comunidade da referida obra. Se for inevitável a obra, tem que haver ações mitigadoras desse impacto”.

Na prática, não é bem assim

No entanto, isso não é o que costumamos ver. No ano passado, por exemplo, moradores do Quilombo Kedi acordaram com o barulho de retroescavadeiras destruindo casas e moradores sendo pressionados a vender suas casas para dar lugar a um empreendimento imobiliário de grande porte. O Quilombo Areal da Baronesa, que existe desde o final do século 19, só recebeu o certificado de quilombo urbano pela Fundação Palmares em 2003, com reconhecimento pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 2014. A área pertence ao Município de Porto Alegre, e foi próprio governo municipal, em maio de 2015, que submeteu à Câmara um projeto que autorizaria doação da área aos moradores.

A Câmara de Vereadores aprovou o projeto, mas há quase nove anos o Quilombo aguarda. Isso apenas para citar dois casos em Porto Alegre. Na prática, isso representa um enorme insegurança jurídica aos moradores, pressão do mercado imobiliário e falta de acesso a políticas públicas.
Para o líder dos Machado, Porto Alegre é uma das cidades mais segregadas e racistas, assim como o Rio Grande do Sul se mostra como o estado mais racista do Brasil.

“Porto Alegre é uma das cidades que têm mais especulação imobiliária. É uma das cidades que tá mais crescendo a nível de prédios – e é a que tem mais prédios abandonados. E cada local que a gente está ali querendo fazer aquele segundo da reparação que não nos foi dada, eles querem nos tirar. Sempre foi assim pra gente. Com o Quilombo dos Machado não é diferente. Com o Quilombo dos Fidelix não é diferente. Com o Areal não é diferente. Com o Flores não é diferente. Com as comunidades quilombolas urbanas de Porto Alegre não é diferente”.

Jamaika também explica que, mesmo a família dele e a comunidade quilombola – que foi crescendo ao longo do tempo – habitarem o espaço há mais de 60 anos, foi só após a retomada do território, em 2012, que começaram a aparecer pessoas dizendo serem proprietárias dos terrenos.

Ele ainda explica a diferença de um quilombo urbano do rural. “Lá, a luta é com o agronegócio, aqui, a luta maior é contra o racismo – que tem diretamente, todos os dias, olhares para você, chamando você de invasor – e com a especulação imobiliária, sempre querendo criar alguma coisa em cima da sua cabeça.” 

O Quilombo começou com sete famílias. Hoje são 260. Foram retirados, voltaram, a Brigada Militar apareceu, foram “entrando de novo”, a polícia veio novamente e tirou, e, assim, a comunidade “resolveu ir cada vez mais se aquilombando” e procurou seu reconhecimento enquanto quilombo em 2012. Em 2009, o Quilombo da Família Silva, também na zona norte da capital, se tornava o primeiro quilombo urbano com titulação definitiva no Brasil.

O nome “Quilombo dos Machado” apareceu mais tarde, depois de a comunidade “entrar de vez” – que é como Jamaika se refere à retomada. Começou com o nome de “Comunidade Sete de Setembro”, não pelo sete de setembro “institucional”, mas é pelo dia em que a retomada começou.

“É onde é o epicentro da desgraça agora”

Apesar de não ter alagado logo nos primeiros dias da enchente, o Sarandi foi o bairro mais afetado pelas inundações em Porto Alegre. Boa parte disso, em função do rompimento de um dique que fica localizado no bairro, o qual a prefeitura demorou para assumir que de fato tinha rompido.

Todos os moradores do Quilombo dos Machado que foram afetados pela enchente já voltaram para suas casas e estão, agora, se organizando para reconstruir suas moradias, mas há muita incerteza ainda. “Algumas famílias demoraram mais de 30 anos para construir suas casinhas, não sei se vão conseguir voltar, algumas já têm idade avançada pra tentar voltar, e mesmo se fossem novos, são pobres”, afirma Jamaika. 

Ao longo da conversa, algumas pessoas paravam na frente da casa e perguntavam sobre doações ou informações ao homem que estava na frente das mesas. Duas senhoras vieram perguntar se tinha água para doação, mas foram informadas que chegaria mais tarde. Logo em seguida, o barulho dos pingos de chuva ficou mais forte.

“Se a gente pegar 150 metros daqui, estava inundado do lado esquerdo. Se a gente for pegar para o lado direito de onde a gente tá olhando, tem o arroio aqui, que é o arroio do Sarandi, ele estava a 10cm para transbordar. Se a gente pegar aqui pra trás, tem até uma comunidade dentro do quilombo, que é o beco dos haitianos, estavam dentro d’água. Agora, se eu for lhe responder como que não chegou água aqui nesse ponto onde a gente tá agora, eu não sei responder. Mas o orixá respondeu: tinha que ser. Era pra ser assim”, conta com a voz potente. Jamaika conta que viu através do jogo de búzios.

Na cozinha onde estávamos, consegui ver as imagens de Ogum e de São Jorge (no sincretismo, São Jorge é Ogum), além de ver Xangô com seu machado. Mais para dentro, noutro cômodo, vi uma estante que funcionava como um grande altar, com estátuas e outros elementos. Do lado de fora, espadas de São Jorge e outras folhagens.

A entrada da casa de Jamaika, com um quadro de São Jorge e folhas (Foto: Paola De Bettio/Beta Redação).

Com a enchente, o quilombo recebeu grande ajuda das pessoas de fora do quilombo. “Dá pra contar com a solidariedade das pessoas, mas das instituições só na marra”, comenta Jamaika. Segundo ele, o Quilombo teve problemas para receber doações de algumas instituições, que pediam a existência de um CNPJ.

Chegaram doações do Espírito Santo, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Maranhão, Paraná. Das 260 famílias, ele estima que 40% – cerca de 60 famílias – foram atingidas pela enchente. Ele afirma com muita ênfase que, se depender dele, elas não vão passar fome. A luta agora, no entanto, também é para encontrar meios materiais para reconstruir as moradias propriamente.

Ao longo de 40 minutos de conversa, vi um líder que fala da comunidade como um pai fala dos filhos. Vi ele olhar pela porta para conferir quem passava como um pai confere o que seus filhos estão fazendo no jardim. Fala com muita garra, sabe ser muito sério e forte quando precisa. Além disso, é determinado em afirmar que o quilombo não vai sair dali e demonstra grande potencial de argumentação crítica, sabendo de cabeça dados e números importantes para a batalha.

Paola De Bettio

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