Os desafios de retratar o motivo da própria dor

Durante o maior desastre da história do estado, profissionais que trabalham com imagem mostraram ao mundo a situação das cidades gaúchas

Digue Cardoso, fotojornalista

“Nos primeiros dez dias, a gente trabalhou no piloto automático. A partir dali eu comecei a não querer ir mais. Passou a ficar pesado porque eu via que a água não descia e não estava tendo fim. A gente foi de barco em lugares difíceis, fomos hostilizados pela população e até ameaçados com armas para sair de certos bairros, mesmo estando com a defesa civil. Estas hostilidades começaram a pesar na decisão de ir para campo, filmar e fotografar”, relata o fotógrafo Digue Cardoso. 

Em 3 de maio, um pesadelo começou na vida dos gaúchos e esse mesmo dia se repetiria por mais de um mês. Ruas alagadas, locais destruídos, e, mais do que perder bens materiais e conquistas, a chuva ia devastando sonhos e vidas. Na cidade onde o fotógrafo vive, São Leopoldo – Região metropolitana de Porto Alegre, cerca de 80% das casas foram atingidas, o que implicou em 180 mil pessoas afetadas e mais de 100 mil desabrigados.

Embora sua casa fique em um lugar alto da cidade, o fotógrafo Digue esteve na linha de frente das imagens que viralizaram no Brasil inteiro. Enquanto isso, ajudava famílias desabrigadas fazendo o transporte de doações e se preocupava com o irmão Sandro, de 50 anos, que precisou ser salvo de barco do terceiro andar do prédio em que morava, no Centro de São Leopoldo. “No início eu queria mostrar o que estava acontecendo aqui. Porém, no momento que estabilizou e não aconteceu nada de novo, o meu foco passou a ser a reconstrução”, garante.

Um dos vídeos que o fotógrafo fez, com o uso do drone pessoal e repostado pelo gabinete da presidência da república, foi de uma rua de terra feita emergencialmente sobre a rodovia BR-116, que estava inundada. Assim como todas as pontes de São Leopoldo que davam acesso a cidade vizinha de Novo Hamburgo. 

Reconstrução do Dique do Arroio João Corrêa, em São Leopoldo. Foto: Digue Cardoso/Arquivo Pessoal
Bomba de drenagem utilizada nos bairros da cidade. Foto: Digue Cardoso/Arquivo Pessoal
Estrada de terra feita de forma emergencial, por cima da BR-116, no trecho que atravessa o município. Digue Cardoso/Arquivo Pessoal

Devido aos bloqueios nas rodovias, “as imagens assustadoras de São Leopoldo”, como coloca o próprio fotógrafo, só foram vistas em âmbito nacional a partir do momento que profissionais da cidade começaram a produzir fotos e vídeos, mesmo sendo uma situação difícil para eles também. Antes, o que aparecia nos veículos de comunicação nacionais, por questão de logística, era a capital Porto Alegre e suas cidades mais próximas. Enquanto isso, em São Leo, 107 abrigos foram montados emergencialmente e receberam mais de 14 mil moradores que ficaram sem lar, após a água invadir as suas residências. Ao todo, mais de cem mil pessoas ficaram desalojadas e tiveram que ir para casa de parentes, amigos ou aos abrigos públicos. Os números representam cerca de 46% da população da cidade de 217 mil habitantes.

Mesmo com tudo isso acontecendo, o fotógrafo foi a campo, participando não apenas dos registros das enchentes, mas também dos estudos realizados pela defesa civil e órgãos públicos. Naqueles dias, a Prefeitura de São Leopoldo entrou em contato com Digue porque precisava verificar o ponto em que um dos diques que protegem a cidade estaria supostamente vazando. “Eram 7 da manhã e recebi uma ligação da Prefeitura, o que já não é normal. Eles não podiam falar muito, mas queriam uma imagem de um local específico”. O fotógrafo conta que muito além do que foi para mídia, fez muito material de mapeamento e verificação das áreas alagadas, para uso interno da Prefeitura, com o seu drone pessoal.

Ilustrando a tragédia

 Já em Porto Alegre, 46 bairros foram afetados pelas enchentes. Mais de 157 mil pessoas viveram ou seguem vivendo esse pesadelo há mais de dois meses. Muitos perderam bens materiais e sua renda cotidiana, e outros, menos afetados, aproveitaram o talento para expressar o sentimento através da arte. É o caso de Pedro Leite e Lucas Levitan. Pedro é formado em publicidade e encontrou na ilustração uma forma de juntar trabalho com prazer. Durante o mês de maio, o cartunista e ilustrador teve um desafio inédito: utilizar seus quadrinhos como forma de pedir doações e de refletir sobre a tragédia que sua cidade vinha enfrentando.  

Nascido em Porto Alegre, Leite sempre morou na região central da cidade, área em que boa parte ficou embaixo d’água durante o mês de maio. Apesar disso, não teve sua residência atingida. “Por sorte, sofri apenas com a falta de água e luz. Busquei abrigo na casa da minha mãe, que fica na Zona Sul, por alguns dias. Porém vi muitos colegas cartunistas que passaram por situações extremas. Me considero um privilegiado”, lembra o artista.  

Foi na casa da mãe que resolveu adaptar seu trabalho. Trabalhando há alguns anos com a literatura infantil, criou uma série de livros e quadrinhos batizada de “Sofia e Otto”, onde conta o cotidiano de uma família moderna de maneira crítica e leve. Acostumados a viverem no universo próprio, dessa vez os personagens saíram da ficção para dar de cara com a realidade. Com mais de 60 mil seguidores nas redes sociais, a dupla se mostrou de uma maneira diferente. 

A ilustração conseguiu retratar a angústia e o anseio do povo gaúcho de forma lúdica.
Arte: Pedro Leite/Sofia e Otto

Os tradicionais sorrisos, foram substituídos por carinhas preocupadas, acompanhadas de um guarda-chuva que tentava, de maneira falha, cobrir o território do Rio Grande do Sul. “Vi ali uma oportunidade. Como os personagens são bastante conhecidos e acumulam milhares de fãs, resolvi fazer essa charge para chamar a atenção do país para a situação que estávamos enfrentando”, descreve Leite. 

Em Porto Alegre, onde Pedro nasceu e vive, foram atingidos pelas cheias: dois hospitais, 22 unidades de saúde, 3 farmácias populares, 45 mil empresas, mais de mil quilômetros de vias públicas, 186 praças, 160 escolas, e quase 40 mil edificações foram danificadas pela água. Assistir essas perdas, enquanto se está em segurança, pode produzir um sentimento estranho, talvez uma mistura de impotência com vontade de salvar o mundo, assim como uma sensação de culpa por, talvez, não estar fazendo tudo o que poderia. Para Pedro foi assim. Viu colegas perdendo um estúdio inteiro. Outro, perdeu a casa em Canoas, e uma amiga que não conseguia produzir seu trabalho, tamanho o esgotamento físico e mental que sofreu. Ainda assim, embora se preocupe em enfatizar que se sentia muito privilegiado, também sofreu as consequências da calamidade em Porto Alegre. “Vendia muitos livros da Sofia e Otto, principalmente para escolas. Nesse período, a venda caiu para nada”, lamenta.  

Durante suas experiências no interminável mês de maio, fez uma reflexão junto aos amigos, que, posteriormente, seria a temática de mais um quadrinho que produziu. Como mostrado na imagem abaixo, o cartunista fez um paralelo entre a enchente de 2024 com a pandemia de Covid-19 que o mundo enfrentou há pouco tempo. Situações completamente distintas, mas que despertavam sentimentos muito parecidos. “Se em 2021 estava preocupado com os gráficos que atestavam o aumento de casos da Covid, este ano a preocupação era com a curva de aumento do nível do Guaíba, que subia rapidamente com o passar dos dias”, afirma. 

A charge compara diferentes tragédias vivenciadas, mas que despertaram os mesmos sentimentos na população. Charge: Pedro Leite/Sofia e Otto

 A reportagem da Beta Redação passou ao ilustrador a tarefa de resumir as últimas semanas em poucas palavras. Um pedido complexo para quem estava acostumado a ilustrar e não a escrever. Após alguns instantes, veio a resposta. “Pessoalmente, foi um mês estagnado, exaustivo, engessado e sem evolução”, resumiu.  

A catástrofe vista sob a ótica infantil

“Papai, você está com medo de que teu pai e tua irmã morram?”, esta foi a pergunta que o ilustrador, Lucas Levitan, ouviu da filha de 6 anos. Logo nos primeiros dias da enchente, o artista se deparou com um dilema dentro da própria casa. Pai de três meninas, se viu em uma situação complexa ao ser questionado sobre seus medos. Lucas pensou: “O que passa na cabecinha de uma menina de 6 anos? Com certeza muita coisa e é difícil explicar. Eu me sentei com ela e conversei. Foi nesse momento que percebi que faltava algo. Um recurso que conversasse diretamente com as crianças. De forma lúdica e atrativa”, reflete, o ilustrador de Porto Alegre, que mora fora do Brasil há 17 anos, mas mantém contato com amigos e familiares do Rio Grande do Sul. 

Lucas Levitan, depois de ouvir a pergunta da filha, também buscou ajudar por meio dos livros, mesmo estando longe do país, na cidade de Serra de Madrid, há 40 quilômetros da capital da Espanha. Assim como Pedro, a profissão de Lucas possibilitava fazer algo a respeito. De acordo com o próprio, este foi um momento de muitos questionamentos internos. Entre eles a necessidade de fazer mais. “Eu fiz as doações, doei tudo o que pude, mas senti a necessidade de fazer algo mais. Porém, o que se pode fazer de longe?”, questionava.

Capa do livro infantil “Pingo de Esperança”. Ilustrado por Lucas Levitan e roteirizado por Fred Pinto. 

 Foi então que teve uma ideia. Juntou-se com seu amigo e roteirista Fred Pinto para tirar um projeto do papel: “Pingo de esperança”. Os dois idealizaram o livro infantil que ajudaria as crianças a entenderem o que está acontecendo e a lidar com essas emoções.

Segundo Lucas, o livro aborda a perspectiva de que não iremos encontrar o mesmo estado, a mesma cidade ou os lugares da mesma forma que antes, mas que podemos fazer novos amigos e nos posicionarmos como uma sociedade mais solidária. “Tocar na emoção da pessoa já é o alimento para o artista. O meu interesse é que isso sirva de lição para novas gerações”. Além das doações e o trabalho artístico, o ilustrador procurou instituições do Rio Grande do Sul e colocou o pix de cada uma das ONG’s no final da obra, para que as pessoas que se sentirem tocadas pela história possam ajudar quem foi atingido. 

Todos podem ser doadores de um pingo de esperança. Obra: Lucas Levitan/Pingo de Esperança

Digue relembra a importância do trabalho de fotógrafos e artistas. Afirma que estes trabalhos foram e são fundamentais durante este período para dar visibilidade a todos os acontecimentos e notícias. 

Uma preocupação constante e objetivo dos profissionais aqui retratados, foi o cuidado em nunca explorar a tragédia. O foco sempre foi mostrar o que a enchente causou, as informações do que as pessoas deveriam acessar e, a partir daí como deveriam agir, para onde ir e como acessar os serviços de reconstrução das cidades atingidas pela enchente. 
 
O paralelo entre a realidade e as obras artísticas é resumida por Lucas Levitan. “A história não é bonita e não tem um final feliz. Não era essa a intenção. A ideia é fazer com que a criança cresça um pouco e tenha mais resiliência. A perda não é o ideal, mas ela existe e sempre deixa algum ensinamento”, finaliza o artista. 

Gabriel Muniz Ribeiro

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