Um artista tem o dom de criar, inventar e misturar elementos, assim como a DJ de uma festa que seleciona e mixa as músicas que irão tocar. Artistas podem dar vida a personagens ou serem o próprio protagonista da história, quando não se pode mais separar a arte do autor. Mírian Thais Pires Moreira, de 29 anos, criou a DJ Mia para viver da música, ter coragem de subir em palcos, dançar e fazer tudo o que não era compatível com a vida pessoal. Entretanto, a história da DJ Mia nos revela que a criação artística de uma personagem, que o próprio artista irá viver, é muito mais do que colocar uma peruca, maquiagem, subir no palco e “brincar” de ser famoso. Requer superação de abandonos familiares. Resiliência para continuar tentando após levar golpes. Força para largar amores, empregos e amigos. Coragem para tomar decisões rápidas e, claro, a visão de um verdadeiro artista capaz de ter epifanias ao enxergar o nome do personagem em um estepe de carro ou decidir o que quer fazer da vida durante um festival de música eletrônica. A DJ Mia é a realização de um sonho da Mírian, mas também um sinal de resistência, exemplo de superação e representatividade da coragem feminina. “Eu quero que o público entenda que eu estou ali pelo mesmo motivo que eles: fazer festa e viver a vida, mas também estou vivendo um sonho e dividindo isso com eles”.
Mírian nasceu em Novo Hamburgo, Região Metropolitana de Porto Alegre, no dia 24 de dezembro de 1994, véspera do Natal. Recebeu o dom da arte como presente desde o primeiro dia de vida. Com músicos na família, por exemplo, o avô baterista de uma banda de músicas tradicionalistas do Rio Grande do Sul e os primos que já brincavam de DJs nas festas de finais de semana, ela já possuía uma veia artística. “A gente tem fotos deles mixando, eu dançando em volta, sempre dançando! Eles tocavam estilo Summer EletroHits, pois meus primos gostavam de eletrônica dos anos 90, época do Eurodance e Eurovision [músicas eletrônicas da Europa]. Então, eu sempre gostei disso, me envolver com a cultura pop, quarto com pôsteres, todas as fases de adolescente eu passei, até emo eu já fui”, relata DJ Mia.
Hoje, vivendo da própria arte, Mia é fundadora do selo Hit For Street com o namorado, Patrick Motta (vulgo MC Motta, o Chefinho), que também é músico, produtor e artista. O casal mora em Estância Velha de aluguel, um dos quartos da casa foi adaptado como estúdio para fotos, vídeos, músicas, gravações e todo produto artístico que eles consigam produzir, sem precisar terceirizar. “Nosso relacionamento é bem balanceado. A gente se ajuda e evolui juntos. Isso é uma vibe muito forte, pois hoje em dia estamos conseguindo viver só da arte”, conta Motta, que ainda afirma: “A primeira coisa é a coragem, isso é fundamental para conseguir manter um relacionamento artístico e manter as contas, já que a nossa renda hoje vem de todo material artístico que a gente faz”.
Por mais que tenha crescido com uma veia artística forte e sempre tenha se interessado por cultura e arte, Mírian vem de uma família evangélica, da Igreja Adventista do Sétimo Dia, e decidiu que queria ser DJ apenas em 2015, a um mês de completar 21 anos. Do mesmo jeito que cresceu, pulando e dançando, ela estava em um festival de música eletrônica chamado Orion Festival, em 2015, ouvindo o DJ Mandrágora, quando teve o insight: “É isso! É isso!””, Mírian falava puxando a irmã dois anos mais nova, Maria Paula, que estava em cima dos ombros do namorado assistindo ao show. Maria Paula não entendeu nada naquele momento, mas depois Mia explicou: “É isso que eu quero fazer! O que ele está fazendo agora. Quero subir lá em cima, quero que todos estejam aqui para me ver, porque eu vou fazer melhor que ele”.
“Quando eu vi ele tocando meu olho brilhou, é isso que eu quero. Eu via que ele estava amando tocar, ele conhecia cada toque da música, sabia tudo! Tudo se encaixava de uma maneira que parecia que ele estava dentro do bagulho”, conta Mia, relembrando o momento enquanto toma um chimarrão. A partir dali, Mírian voltaria a Santa Catarina para trabalhar e juntar dinheiro para pagar um curso de produção musical e iniciar a carreira como DJ.

Quando tinha 15 anos, a artista foi morar em outro estado, contra a vontade, com o pai, a madrasta e as duas irmãs por parte de pai (Evelyn, 16, e Eduarda, 19 anos, na época ainda crianças). Simples férias de verão se tornaram cinco anos e um grande trauma na história da Mirian Moreira. Ela cresceu com a mãe, a irmã Maria Paula e o padrasto. Com medo dos perigos que a rua oferecia, a mãe, Maria Aparecida, que sempre trabalhou como governanta para uma pianista reconhecida internacionalmente (Olinda Alessandrini), arrumava atividades no contraturno da escola para ocupar a filha. Uma das atividades era aula de violino, que por certo tempo não gerou tanto interesse, mas depois de ver uma apresentação clássica surtiu efeito na menina de 12 anos – isso acabou dois anos depois, com o fim do projeto musical, que era da prefeitura. “Eu e a minha irmã fazíamos uma espécie de Jornal Nacional para a minha mãe e o meu padrasto, com todas as notícias que víamos durante o dia, para eles não precisarem assistir e poderem prestar mais atenção na gente”, lembra Mia, descrevendo que a bancada era uma porta de roupeiro, apoiada em duas pilhas de livros nas pontas.
Enquanto termina mais uma cuia de chimarrão no sofá da sala, Mia conta que não queria e não sabia que iria morar em Santa Catarina. O som alto que vinha do estúdio era a nova música que Motta estava produzindo e dava a trilha sonora da história conturbada que ela estava contando. “Minha mãe falou que eu iria passar férias com o meu pai, eu fui e um dia ela bateu na porta. Eu pensei que era para me buscar.” Porém, estava enganada. A mãe perguntou se ela estava gostando de ficar lá e, quando Mirian disse que sim, a mãe respondeu: “Que bom! Porque é aqui que tu vai ficar”, e jogou as malas para dentro. “Minha mãe me mandou embora! Foi um bagulho muito horrível! Eu demorei muitos anos para entender ou aceitar. Mesmo eu entendendo melhor hoje e tendo boa relação com ela, não faz sentido na minha cabeça o que ela fez. Ficou com a minha irmã, não deixou eu levar minhas coisas e me despedir dos amigos. Deixei meu quarto, roupas, amigos, eu não pude nem decidir o que eu iria levar.”
Com o objetivo de sair da casa do pai e da madrasta, Mirian fez diversos vestibulares após o ensino médio. Passou em Design, em uma faculdade particular perto de casa, mas, mesmo sendo o que queria fazer, optou por cursar Meteorologia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), localizada em Florianópolis, a mais de 70 quilômetros de distância de Ipanema, onde vivia com o pai. “Não me pergunte o que foi que passou na minha cabeça quando eu fiz isso. Eu só fiz. Eu não sabia o que iria acontecer. Eu só fiz. A minha motivação de sair de casa era muito maior do que pensar como eu iria me virar. Passei muita dificuldade.” Após cerca de dois anos, Mirian não quis mais o curso e voltou para o Rio Grande do Sul, onde decidiu que queria ser DJ. “Desde sempre quis ir para a área da arte. Eu sempre gostei de arte, a vida inteira eu me dei bem na área da arte. Sempre fui ligada à cultura pop, tentando imitar os clipes.”
Quando voltou para Florianópolis, mais madura, se sustentando e decidida a ser DJ ou pelo menos buscar o que tinha visto no DJ Mandrágora, Mia trabalhava em uma loja de roupas dentro de um shopping de Balneário Camboriú, para juntar dinheiro e pagar o curso de produção musical. Porém, o sonho foi interrompido antes mesmo de começar. O curso adquirido na verdade não existia. Após pagar a última parcela, a artista percebeu que se tratava de um golpe e não passou da terceira aula. “Eu paguei para ela por semana, não tinha dinheiro. Mano, trabalhava 12 horas por dia, de domingo a domingo. Cobria folga de todo mundo para ganhar mais dinheiro. Aí eu me decepcionei, esqueci tudo, não quis saber mais de festa.”
Para a sorte dos fãs da DJ Mia, ela não parou! Do limão, eis que surge a limonada. A artista tomou a decisão de se demitir da loja de roupas e, com o dinheiro da rescisão, comprar equipamentos para ser DJ. Ela teve algumas experiências adquiridas em festas que tocou com um antigo amigo, ainda da época da igreja, então comprou um notebook e uma controladora para mixar as músicas. Do estepe fixado na parte externa de um carro estacionado na rua, ela teve a primeira ideia de nome artístico: DJ EME. “Quando eu vi, já imaginei adesivos e capa de disco. Em Santa Catarina, todos me chamavam de EME.” Logo depois, por não ter registrado o nome, a artista o perdeu para outro DJ que o utiliza até hoje e é ex-namorad da atriz Kéfera Buchmann. “Até tentei entrar em contato com ele na época, mas ele foi irônico, postou print e riu da minha cara.”
A origem musical da DJ é o eletrônico. Ao tentar vender o gênero no RS se deparou com a não aceitação do público, mudando o estilo das festas e toda sua concepção sobre música. “A Mia começou na eletrônica também, mas eu não sabia o que estava por vir, eu fazia o que me dava na telha. O eletrônico ainda faz parte de mim, mas atualmente estudo muito mais funk, pois é o que estou vendendo. Aprendi que funk não é o que toca nas festas, assim como na música eletrônica, o funk tem várias vertentes.” O namorado e MC de funk Motta, o Chefinho, também deu dicas para a DJ Mia entrar de vez no cenário artístico com o funk e a bagagem do eletrônico: “Ela sempre quis tocar em várias festas, postar agendas cheias de eventos, o que brecava era a questão do eletrônico. Em um ou dois eventos com ela já pude perceber que a galera da eletrônica aqui no RS é bem nichada. Eu vi então no caminho do funk uma possibilidade para a DJ Mia.”
Em 2022, Mia foi convidada por um amigo fotógrafo, o Japa, para passar alguns dias em São Paulo, pois ele teria contato de festas para ela tocar: “Quando eu fui para São Paulo, eu entendi que a cidade é uma máquina que gira 24 horas por dia e tudo que acontece lá é arte, desde as empresas até vagões de trem”. A DJ tocou em casas de festas como High Line Bar e Galeria Bar, considerada por ela a mais importante, pois havia pessoas famosas e influentes, como Léo e Jade Picon, Gabriel Medina e Yasmin Brunet, Pyong Lee, entre outros. Quando ela saiu dessa festa, encontrou um dos sócios da casa, em outro evento, que elogiou o trabalho da artista. “Quando eu perguntei para ele como sabia se nem estava lá, ele me mostrou os vídeos no grupo da Galeria e todos os sócios estavam me elogiando, dizendo que eu tocava muito. Foi muito foda esse dia! Chorei muito!”, conta Mia, sorrindo no estúdio de arte da sua casa.

Embora tenha recebido propostas e pensado em mudar para São Paulo, Mia diz que a pressão era grande. “Não sei explicar, eu literalmente não estava pronta ainda para largar todo meu trabalho e ficar lá vivendo de arte. Fui só para testar e sentir um gostinho.” Ela também conta que faltou maturidade para largar a emoção e ser mais racional. “Lá eles te querem como um produto ou mercadoria e só. Eu tenho muito sentimento envolvido, gosto das pessoas e do que eu faço.” Outro motivo de ainda estar no sul do Brasil é carregar consigo a bandeira do lugar em que nasceu e vive. “Eu acho que se eu não conquistar onde eu estou morando hoje, não tem por que eu ir para São Paulo. Não posso explorar lá se ninguém me conhece aqui. Se eu não for conhecida na minha rua e bairro, o que eu quero em outro lugar? Preciso conquistar aqui primeiro.” A artista também percebeu que o Rio Grande do Sul era atrasado nas músicas e afirma que aplica aprendizados de São Paulo até hoje nos shows.
Quando voltou da tour por São Paulo conheceu DJ Cassinho, proprietário de uma produtora musical chamada ZK Company, que ficava no bairro Campina, em São Leopoldo, antes da enchente histórica de maio de 2024. Mia entrou para a produtora e virou amiga de Cassinho. “Na ZK, eu comecei a entender que a cena era muito maior do que pegar a minha mochila e sair para tocar nos lugares. Tinha que me colocar no lugar de artista.” Cassinho elogia a evolução da amiga e parceira de festas: “Ela foi de zero a dez muito rápido. Da água para o vinho, teve uma evolução imensurável.” Cassinho afirma que o principal trabalho dele foi dar o suporte para que ela mesmo se encontrasse como artista e profissionalizar a carreira. “A gente, como produtora, conseguiu mostrar que ela tinha uma equipe para resolver a parte burocrática e técnica na festa. A DJ Mia precisava apenas subir no palco e se preocupar em fazer o show.” A saída dela da produtora, após quase dois anos de parceria, foi tranquila para ambos. Mia cresceu artisticamente e precisava de mais atenção. “Eu sempre tive medo de sair e ele achar que eu fui ingrata. Quando eu conversei com ele, até pela bondade do Cassinho, ele super entendeu”, finaliza Mia.
Para focar na DJ Mia, há alguns meses a Mirian deixou o trabalho de cabeleireira que mantinha em paralelo à carreira, há aproximadamente 4 anos, para viver de arte com o namorado. “Chegou o momento que tive que escolher, toda sexta e sábado tinha shows e eu não conseguia trabalhar no outro dia. Fiz isso durante anos, mas chegou o momento em que a demanda de shows estava alta e era o que eu queria.” Motta incentivou a namorada artista e disse: “Não tem como dar errado porque toda a energia que tu concentra para a dona do salão ganhar dinheiro, tu vai concentrar pra ti fazer dinheiro”. A artista concordou. “Quando eu percebi que eu conseguiria correr atrás das minhas coisas, eu vi que era o momento de me desvincular do salão e correr por mim. A gente passa aperto, assim como qualquer outro trabalho, mas já ganho mais do que ganharia como CLT e isso já é o suficiente. Se eu ganhar igual ou mais com a DJ Mia, não tem por que continuar em outro trabalho.”
Hoje, mesmo sem o reconhecimento que ainda espera alcançar, a DJ Mia não é mais um sonho ou um projeto, ela existe e é real. A DJ Mia abre shows nacionais, como Bonde do Tigrão, MC Don Juan, MC L da Vinte, MC GW, MC Rick, MC Gabzin. “Não teve um auge, mas nunca imaginei abrir shows nacionais”, afirma a DJ.
Depois de se encontrar no caminho artístico, Mia viu que não é sobre eletrônica ou funk, mas sim sobre música e arte: “Eu gosto de música, qualquer música! Se tu me levar na bandinha ou Djavan eu gosto. Eu consegui entender a música, então, eu consigo gostar de música hoje. Antes, a minha cabeça era só eletrônica e não queria saber de outros gêneros”. Isso se aplica também na relação entre a representatividade feminina da DJ em cima de palcos e as músicas pejorativas que toca nas madrugadas. “Eu sou 100% a favor das minas, de ter mais mulheres na cena, mas toco putaria nos meus sets. Eu posso fazer isto, pois aprendi que música é música! É música e arte. A Mia gosta disso. No camarim eu sou a Mirian. Botei o pé no palco, com a minha lace [peruca], eu me transformo. Eu nunca teria coragem de subir no palco e fazer o que a Mia faz”, relata a artista.

Não existem pessoas fortes com caminhos fáceis. Não existe Mirian sem a Mia ou vice-versa. “Eu criei um alter ego que posso fazer tudo o que eu quiser e ninguém vai me julgar, pois é meu mundo e ninguém está vendo. Quando eu expus isso e não tive reprovações, eu só continuei. Eu criei, na DJ Mia, tudo o que eu sempre quis ser como Mirian, mas a minha vida pessoal não se encaixava com o que eu queria na época. Como se fosse o personagem de um filme, onde eu sou a personagem principal e posso fazer o que eu quiser… A Mia pode, a Mirian não”, explica Mirian.
Agora, com a coragem de se desvincular de empregos e se permitir viver de arte, a DJ Mia, a Mirian, o Patrick e o Motta, o Chefinho, estão com mais tempo e disposição para focar nas carreiras e no selo Hit For Street. Ainda não está fácil financeiramente, mas o lar do casal respira arte com um ambiente organizado, quadros espalhados, plantas, incensos e, principalmente, música. Com economias do dinheiro do salão de beleza e a renda que vem de shows, a DJ Mia investiu em um equipamento melhor, uma controladora XDJ-RR da marca Pioneer. Também está com a agenda cheia de shows, o que sempre buscou desde o início da carreira, e parceria com casas que promovem eventos. No último mês, teve a primeira edição do AlquiMia, evento em conjunto com a produtora de eventos de Montenegro Seven Produções. A próxima edição ainda não tem data definida, mas promete causar com a festa temática White Party, em alusão ao caso que ficou famoso mundialmente das festas do rapper americano Puff Daddy. Mais um exemplo de algo que a DJ Mia tem audácia para fazer, mas a Mirian não. “A Mia é um anti-herói, ela não é nenhum vilão, mas também não vai ser aquele herói que vai fazer tudo certinho.”