Bienal do Mercosul retorna com força simbólica e sensível à vida cultural de Porto Alegre pós-enchente

Entre ruídos, silêncios e recomeços, a Bienal acende um novo sinal para a arte na capital gaúcha: uma cidade que ainda reaprende a respirar

Porto Alegre ainda sente os reflexos da enchente que interrompeu a rotina, atingiu espaços públicos, desabrigou milhares e paralisou parte da vida cultural da cidade. Em meio a esse cenário de recuperação, a 14ª Bienal do Mercosul ressurge como um dos principais símbolos de recomeço. Sob o tema “Estalo”, a mostra ocupa novamente os espaços da capital com arte contemporânea, pensamento crítico e, acima de tudo, sensibilidade. É um retorno potente, que vai além do calendário cultural: representa um respiro, uma faísca de vida em uma cidade que ainda tenta retomar o fôlego.

Com obras distribuídas em vários pontos do Centro Histórico até dia 1 de junho de 2025, a Bienal propõe uma experiência de reativação dos sentidos e da escuta. E é justamente esse o significado do tema do evento, “estalo” – um som breve, um momento de ruptura, de despertar. É aquela fagulha que antecede o movimento, que tira do automático, que provoca a mudança. Nesse contexto, o evento ganha contornos ainda mais simbólicos ao ocorrer em uma Porto Alegre que, após o impacto da enchente, busca reconstruir não só ruas e prédios, mas também seus vínculos com a arte, o espaço urbano e a coletividade.

Na edição deste ano, 12 artistas expõem seus trabalhos nas instalações do Farol Santander Porto Alegre – BÁRBARA CEZIMBRA/BETA REDAÇÃO

Entre os locais que recebem a Bienal, um dos destaques é o Farol Santander. O centro cultural, que faz parte de uma instituição privada, decidiu abrir suas portas gratuitamente ao público durante o evento. Ao tornar a arte acessível mesmo em tempos difíceis, o espaço reforça seu papel como agente ativo da cidade. E ali, no Farol, a experiência do “estalo” se manifesta de forma direta e simbólica: a imagem que marca o início do percurso expositivo é a de uma televisão fora do ar, chiando sozinha na sala, como se fosse madrugada.

Um dos diferenciais da exposição no Farol Santander são as diversas salas que propõem uma maior imersão na arte – BÁRBARA CEZIMBRA/BETA REDAÇÃO

O chiado desconcertante do aparelho ressignifica o silêncio. É um ruído que incomoda, que interrompe, mas também desperta. Funciona como uma metáfora para o momento vivido por Porto Alegre: um som que ecoa incertezas, mas também anuncia que algo novo está prestes a acontecer. É a cidade tentando encontrar sinal novamente.

Durante a visita ao espaço, a reportagem conversou com visitantes e artistas. A mediadora Daniele Espinosa compartilhou sua leitura sobre a obra “Poeira de sóis II”, de Yunchul Kim. “Essa obra me lembra muito o funcionamento de um corpo humano, sabe? Um organismo, tudo conectado. Até a forma dela me remete a um tórax. Acho que isso é o mais interessante da arte contemporânea, cada pessoa pode ativar sentidos diferentes a partir da própria subjetividade, do repertório que carrega”, observou.

Para o artista plástico e professor de artes Leonardo Valle, o impacto da Bienal vai além das obras: ele está no movimento que gera. “Eu, que frequento muitos museus, percebo como a Bienal muda a dinâmica da cidade. Vejo famílias, escolas, casais, amigos… Gente que normalmente não frequenta esses espaços, agora ocupando museus e centros culturais. Isso não acontece fora do período da Bienal, infelizmente. Falta uma política que mantenha esse tipo de investimento e visibilidade ao longo do ano”, afirma Valle.

A Bienal marcou a reabertura do Farol Santander, que estava fechado desde a enchente de maio de 2024 – BÁRBARA CEZIMBRA/BETA REDAÇÃO

A 14ª Bienal do Mercosul se coloca, assim, como mais do que uma mostra de arte. É um convite ao despertar coletivo. Cada obra, cada instalação, cada som e imagem propostos ao público não são apenas experiências estéticas, são estalos em série que provocam escuta, presença e ação. Em um momento em que tudo parece incerto, é a arte que oferece um caminho possível: o de reconstruir a cidade por dentro.

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